Há certos conceitos que ao serem mencionados levam de imediato à comparação. Não há volta a dar. Há géneros de jogos que nascem até a partir destas comparações, os Soulikes, os Metroidvanias, os Kart Racers…
E há certas descrições de jogos, que, quando uma pessoa as lê pela primeira vez, trazem apenas uma reação: “Espera aí, eu já não vi isto antes?”
Atomic Heart é o primeiro jogo da Mundfish, uma equipa baseada no Chipre com colaboradores de todo o mundo.
O seu enredo decorre numa versão idealizada da União Soviética após a segunda grande guerra, que combina desenvolvimentos científicos espetaculares com uma estética clássica dos anos 50. No entanto, nem tudo é o que parece, pois na verdade esta utopia descamba quase imediatamente, quando os robôs que se tinham tornado habituais atacam toda a população de um complexo militar que reside acima das nuvens.
A nossa missão enquanto encarnamos o Major P-3, é de controlar o caos sob as ordens do nosso salvador, e criador da rede neuronal que estes robôs utilizam, Dmitry Sechenov. Somos acompanhados por uma luva denominada de Char-les, que para além de ser um excelente parceiro de conversa, também tem alguns ataques para nos ensinar. No entanto, nem tudo o que Sechenov nos diz parece ser verdade, e existem razões para suspeitar que isto é mais do que um simples acto de traição por parte de um cientista.
Vamos tirar o óbvio do caminho. Sim, o conceito do jogo é extremamente semelhante ao do Bioshock Infinite, desenvolvido em 2013 pela Irrational Games (agora Ghost Story Games). Cidade no céu com estética dos anos 50? Check. Protagonista habituado ao combate com um passado misterioso e poderes para além das armas que usa? Check. Companheiro espirituoso com o qual este protagonista pode ir conversando enquanto o jogador vai explorando? Check! Mas vamos explorar aquilo em que Atomic Heart se destaca:
A dobragem em russo está fenomenal, proporcionando um nível de imersão espetacular, embora exista também dobragem e legendagem em português do Brasil, para os interessados. As animações dos robôs são arrepiantes na dose certa, proporcionando aquele sentido de uncanny valley que o jogo utiliza propositadamente.
Os protagonistas principais, neste caso o Major P-3 e o Char-les, são legitimamente agradáveis de ouvir e ler. O Major destaca-se de outros protagonistas do estilo sendo no geral simpático, embora não plácido e sereno, tendo sempre uma resposta para robôs mal-educados ou chefes sem noção; mas sem, no entanto, nunca cair no exagero. É um personagem verdadeiramente bem-realizado, com charme e humor. O Char-les também tem sempre perguntas aguçadas a fazer ao nosso Major que só quer seguir as suas ordens, e tem alguns momentos que me fizeram rir.
No entanto, em termos de jogabilidade, não fiquei assim tão impressionada. O combate é o combate típico de um first-person shooter com ataques especiais. Tem vários tipos de armas para utilizar, vários tipos de machados para ataques de perto, e os ataques especiais da luva. O ponto positivo, é que se este for o tipo de combate que um jogador gosta, então está no sítio certo. O que pode ser considerado genérico também pode ser considerado ‘em equipa que ganha não se mexe’. O combate funciona como ferramenta de entrega da história, e pelo menos para mim, isso é o mais importante num jogo destes.
Noutros pontos de jogabilidade, o jogo relembra-me de outro clássico: Portal, da Valve. Grande parte do Atomic Heart é passada a explorar complexos subterrâneos abandonados, a resolver puzzles, e a evitar robôs assassinos. Num certo complexo em particular, no qual dependia de subir e descer plataformas magnéticas, a semelhança da atmosfera era tal que a comparação foi instantânea e profunda. Para além de um ligeiro período de habituação ao platforming, os controlos nestas secções do jogo também são perfeitamente funcionais.
Tendo falado do bom e do aceitável, vamos falar do mau. O jogo às vezes tem instruções um pouco obtusas (hold R1 + R1 não é uma instrução óbvia para double tap no R1 com hold), e é fácil ficar preso em certos objectos. Os colecionáveis que se vai apanhando com lore extra, embora tenham legendas quando os apanhamos, não têm legendas no menu se os quisermos ouvir novamente. O jogo preza-se em não ter loading screens para além dos no início, mas o que tem na verdade são várias, longas viagens de elevador.

O maior problema que eu vejo, no entanto, são os imensos momentos que dão vontade de desistir. O jogo, no seu esforço por ser imersivo, não tem fast travel, o que seria louvável… se fosse mais fácil viajar pelo mundo aberto. Fora dos complexos subterrâneos, há constantemente robôs a patrulhar o exterior, e se uma câmara nos apanha a atacar um, manda um exército deles contra nós. O jogo também não tem veículos facilmente disponíveis, o que faz que nos percursos mais longos, se por alguma razão o nosso carro explode (sei lá, talvez o tenhamos mandado contra os vários robôs que nos estavam à frente), seja extremamente difícil encontrar outro, e tenhamos que fazer o percurso a pé. A evitar robôs.
Um momento em particular foi quando emergi de um dos complexos subterrâneos para um local aberto bastante longe de onde tinha inicialmente entrado. O caminho de retorno por dentro da base era longo, e o final do puzzle tinha-me levado a uma porta para o exterior. Por detrás desta porta havia um carro e uma estrada de sentido único. Portanto, eu achei que o objectivo desta secção, que era regressar ao início do complexo, fosse pegar no carro e ir à volta, sem ter de voltar a passar pelo interior.
Na verdade, não era. Na verdade, quando cheguei à porta por onde tinha entrado, esta estava fechada. E o carro tinha já explodido. E o local alternativo por onde eu tinha saído era longe. E o último local que permitia gravar tinha sido há mais de meia hora.
E a única coisa que eu quis fazer foi… parar de jogar. Quais eram as minhas alternativas, voltar atrás durante quinze minutos a pé? Fazer load do jogo e voltar a lutar contra mil robôs e um bicho mutante estranho? O jogo não devia castigar os jogadores por explorar, mas com o mundo cheio de inimigos que não só regeneram como também trazem mais inimigos, e meios de locomoção inexistentes, torna-se mais apelativo simplesmente seguir os waypoints.

Eu estou curiosa para saber o que acontece a seguir na história. Talvez só não o suficiente para voltar a trepar aquela montanha.
TL;DR: Não, Atomic Heart não é o Bioshock Infinite Soviético. É um jogo com potencial, com uma história interessante e personagens apelativos. O sistema de combate será agradável para os fãs do género, mas não há nada de particularmente novo, camaradas.
Prós:
- Áudio e legendas em Português Brasileiro;
- Personagens interessantes;
- História cativante;
- Design inspirado.
Contras:
- Falta de áudio e legendas em Português de Portugal;
- Instruções pouco óbvias;
- Platforming requer habituação;
- Mundo aberto difícil de explorar;
- Momentos de desistência (quit moments).