No vasto e multifacetado universo da animação japonesa, surgem ocasionalmente obras que desafiam as convenções e convidam o espectador a uma experiência verdadeiramente singular. Gato Fantasma Anzu (Ghost Cat Anzu), o mais recente filme de Yōko Kuno e Nobuhiro Yamashita, que chega a Portugal dia 16 de outubro, é precisamente uma dessas obras. Trazendo consigo uma proposta visual ousada, aqui no OtakuPT já tive a oportunidade de assistir ao filme anime.
Longe de ser apenas mais um conto de fantasia, este filme mergulha nas profundezas da emoção humana e do folclore japonês com uma abordagem visual e narrativa que promete cativar tanto os fãs de anime mais experientes quanto os recém-chegados. Baseado no mangá de Takashi Imashiro, Gato Fantasma Anzu tece uma tapeçaria rica onde o mundano e o sobrenatural se entrelaçam de forma orgânica, explorando temas de perda, aceitação e a beleza encontrada na estranheza da vida. Preparem-se para uma jornada que, embora por vezes casual, revela um poder imaginativo notável, comparável a clássicos, mas com uma identidade inegavelmente própria.
A narrativa de Gato Fantasma Anzu centra-se em Karin, uma menina de 11 anos que se vê aparentemente “abandonada” pelo pai na pacata aldeia costeira de Iketeru, no Japão rural. A sua nova casa é o templo do avô, um monge que, para surpresa de Karin, partilha a sua casa com Anzu, um peculiar gato gigante com mais de trinta anos que é, para todos os efeitos, um gato fantasma. Anzu, com a sua natureza preguiçosa e um gosto peculiar por pachinko, é encarregado de cuidar da jovem, dando início a uma dinâmica improvável e, por vezes, conflituosa.
Karin, inicialmente desconfiada e ressentida com a sua nova realidade, tenta sabotar os esforços de Anzu para ajudar os habitantes da aldeia. No entanto, à medida que se adapta ao ambiente, ela começa a fazer amizade com os excêntricos espíritos da floresta que habitam a região. A relação entre Karin e Anzu é o coração do filme, evoluindo de uma antipatia mútua para um laço inesperado. Anzu, numa tentativa de conquistar a afeição de Karin, acaba por fazer um pacto, desencadeando uma série de eventos caóticos e hilariantes que mergulham a dupla numa aventura pelo submundo, com direito a uma viagem inusitada por uma sanita.
Entre o Charme e a Melancolia
Os personagens secundários, como o avô de Karin, uma rã que habita um campo de golfe, um cogumelo barbudo e até um deus da má sorte, enriquecem o mundo do filme, criando uma comunidade de seres peculiares que, de alguma forma, se encaixam na estranheza do quotidiano. A exploração da dor de Karin pela ausência da mãe e a sua dificuldade em lidar com o abandono do pai são abordadas com uma sensibilidade que, embora por vezes casual, ressoa profundamente, mostrando como a vida, mesmo na sua forma mais fantástica, é para ser vivida e abraçada.
O que distingue verdadeiramente Gato Fantasma Anzu é o seu processo de produção inovador. Os diretores optaram por filmar primeiro os atores, capturando não apenas os movimentos mas também as vozes no local, para depois aplicarem técnicas de rotoscopia. Este método, embora não seja novo no cinema, é utilizado aqui de forma exemplar, criando personagens que se movem de forma surpreendentemente natural e autêntica. Mesmo as criaturas não-humanas movem-se com uma organicidade que esbate as fronteiras entre a realidade e o reino espiritual, conferindo ao filme uma textura visual rica e uma sensação de autenticidade invulgar.
Isto resulta numa estética única que combina a expressividade do anime tradicional com um realismo quase documental nos movimentos das personagens. O resultado visual é simultaneamente familiar e estranho, criando uma atmosfera distintiva que serve perfeitamente a narrativa. Este não é um anime para quem busca a fluidez hiperdinâmica de estúdios como Ufotable (Demon Slayer) ou MAPPA (Chainsaw Man); aqui, a estranheza visual é uma linguagem narrativa por si só.
Esta abordagem não só distingue Gato Fantasma Anzu de outras produções anime, como também contribui para a sua atmosfera única. O elenco, liderado por Mirai Moriyama como Anzu e Noa Gotō como Karin, entrega performances naturais que beneficiam da técnica de gravação no local. As suas vozes carregam uma autenticidade que complementa perfeitamente a animação por rotoscopia, criando personagens credíveis e cativantes.
A produção foi entregue à Shinei Animation (Takagi-san the Master of Teasing, Elegant Yokai Apartment Life, Doraemon) e à francesa Miyu Productions.
A capacidade de infundir um naturalismo estranho em momentos de pura fantasia é um testemunho da mestria dos diretores Yōko Kuno, conhecida pelo seu trabalho em Penguin Highway e nos filmes de Shin-chan, e Nobuhiro Yamashita, veterano do cinema live-action, que conseguem criar um mundo onde o fantástico é tratado com uma normalidade desarmante. Este estilo visual não é apenas uma escolha estética; é uma ferramenta narrativa que reforça a mensagem central do filme sobre a coexistência do mundano e do extraordinário na vida.
Gato Fantasma Anzu é mais do que uma aventura visualmente deslumbrante; é uma meditação sobre temas profundos como a perda, o luto, a família e a aceitação da vida em todas as suas formas, incluindo a sua estranheza. A jornada de Karin, que começa com o abandono e a tristeza, transforma-se numa exploração da sua própria capacidade de adaptação e de encontrar alegria em circunstâncias inesperadas. O filme sugere que a vida, mesmo com as suas dificuldades e momentos de dor, é um presente mágico que deve ser vivido plenamente.
A relação entre os vivos e os mortos é abordada de uma forma peculiarmente japonesa, onde o “além” não é um lugar distante e assustador, mas sim uma dimensão que coexiste com o mundo terreno. Anzu, o gato fantasma, e os vários espíritos da floresta não são figuras a temer, mas sim parte integrante da comunidade, cada um com os seus próprios problemas e peculiaridades. Gato Fantasma Anzu não procura respostas fáceis ou resoluções lineares; em vez disso, celebra a jornada, as interações inesperadas e a beleza do mundo.
Apesar dos seus méritos técnicos e estéticos, Gato Fantasma Anzu não está isento de falhas. O ritmo por vezes irregular e uma estrutura narrativa que carece de maior coesão podem frustrar espectadores habituados às convenções mais diretas do anime mais “comercial”. Alguns desenvolvimentos da história sentem-se apressados, enquanto outros momentos se estendem demasiado, criando um desequilíbrio que pode afetar o impacto emocional geral.
A Vida, a Morte e a Aceitação do Inesperado
Gato Fantasma Anzu é assim uma obra corajosa que merece reconhecimento pela sua abordagem técnica inovadora e pela sua visão artística distinta. É certamente um filme que ficará na memória de quem o vir, seja pela sua estética única, seja pelas suas personagens memoráveis.
É um filme que celebra a vida em todas as suas facetas, lembrando-nos que, mesmo nos momentos mais difíceis, há sempre espaço para a magia, a amizade e a aceitação do inesperado.
Para os amantes de anime que procuram algo diferente das fórmulas habituais, este filme oferece uma experiência refrescante, mesmo que imperfeita. A sua chegada a Portugal representa uma oportunidade rara de ver animação japonesa que desafia convenções e explora novas técnicas expressivas.