Desde o final da década de 90, Digimon conquistou fãs em todo o mundo com histórias de amizade, coragem e crescimento entre humanos e criaturas digitais. Embora muitas vezes comparada a Pokémon, a franquia conseguiu construir o seu próprio legado, combinando momentos emocionais com enredos complexos e, por vezes, surpreendentemente sombrios.

O sucesso do anime rapidamente abriu caminho para os videojogos e outros meios, permitindo expandir o universo Digimon de forma mais pessoal e interativa. Cada jogo da série Digimon Story procurou equilibrar a nostalgia com mecânicas modernas de RPG por turnos, oferecendo experiências cada vez mais profundas e acessíveis aos fãs.

Dez anos após o lançamento de Cyber Sleuth, a Bandai Namco Entertainment e a Media.Vision regressam com o mais recente capítulo da série, Digimon Story: Time Stranger, um novo RPG concebido tanto a pensar nos veteranos como nos jogadores que se aventuram pela primeira vez neste universo digital, mantendo intacta a essência que tornou Digimon uma das séries mais queridas da sua geração.

Do nada, um mega Digimon emerge diante de nós

Nesta nova aventura, assumimos o papel de um agente (masculino ou feminino) da ADAMAS, uma organização secreta dedicada a investigar anomalias relacionadas com os Digimon. Sem entrar em detalhes, a história começa com o surgimento de uma ameaça capaz de destruir tanto o mundo humano como o digital, levando-nos a viajar no tempo numa tentativa de impedir a catástrofe.

A narrativa funciona como um enorme quebra-cabeças construído em torno de mistérios, investigações e viagens temporais. Exploramos locais famosos do Japão desde Shinjuku a Akihabara, passando pelo vasto Mundo Digital de Iliad e outras áreas enigmáticas, cada uma servindo como peça de um enredo maior que nos desafia a conectar eventos, personagens e lugares. O ritmo inicial pode parecer lento, mas rapidamente a história ganha força e torna-se verdadeiramente envolvente, ao mesmo tempo que vamos conhecendo aliados carismáticos e inimigos igualmente marcantes.

O jogo inclui a funcionalidade de montar Digimon, que serve basicamente para nos deslocarmos pelos cenários.

Mesmo que não revolucione a fórmula da série, Time Stranger destaca-se pelos seus temas mais maduros e pela forma que constrói o seu mistério. A narrativa presta também homenagem àquilo que os fãs de longa data mais apreciam em Digimon, incluindo várias referências e momentos de fan service subtilmente integrados. A estrutura alterna entre diálogos simples, sequências com vozes e cenas cinematográficas que reforçam os momentos-chave da narrativa.

Um aspeto que atualmente começa a não fazer sentido é a ausência de voz do protagonista. Esta escolha faz com que, por vezes, a personagem pareça algo deslocada da narrativa, como se não tivesse o mesmo peso dramático que os restantes personagens, especialmente quando comparada com o agente alternativo que não escolhemos, que conta com voz gravada.

O Greymon, nesta forma, transmite menos simpatia que a sua versão habitual.

Um dos pilares de Digimon Story: Time Stranger encontra-se no seu sistema de combate por turnos que, embora familiar, consegue ser divertido, profundo e curiosamente gratificante. As batalhas exigem algum planeamento estratégico, com uma gestão cuidada de equipamentos, habilidades, consumíveis e uma análise precisa das fraquezas inimigas.

É notório que o sistema se inspira em clássicos como Shin Megami Tensei e Pokémon, mas consegue afirmar a sua própria identidade. Em campo, controlamos três Digimon ativos, dois aliados de apoio e três reservas. O bom é que temos a possibilidade de trocar de monstros ou utilizar itens sem perder o turno, mantendo o ritmo das batalhas sempre dinâmico e estimulante.

Cada Digimon possui atributos como Vacina, Vírus e Dados, bem como elementos, Fogo, Água, Aço, entre outros, que introduzem um nível adicional de profundidade, criando um sistema complexo que recompensa os jogadores curiosos à experimentação. O combate consegue ser desafiante e ao mesmo tempo acessível para iniciantes, com várias opções de dificuldade disponíveis. Além disso, opções como a aceleração das batalhas, o modo automático e a eliminação de animações tornam o ritmo mais fluído e reduzem a sensação de repetição, algo particularmente útil nas longas sessões de exploração.

Durante os combates, podemos ativar as habilidades Cross Art do nosso agente, que pode aumentar as estatísticas dos Digimon aliados por até dois turnos, aumentar o poder de ataque, curar e oferecer outros efeitos úteis.

Como seria de esperar, os combates contra os bosses representam o melhor da luta contra Digimon. São intensas, exigentes e essencialmente estratégicas, que nas quais precisamos de escolher bem os Digimon que queremos pôr em campo e analisar com minúcia as fraquezas do nosso oponente.

Explorar a cidade dá-nos a oportunidade de comprar itens essenciais para enfrentar os combates.

Onde este novo jogo nem sempre se destaca é na exploração, mais concretamente no seu level design. Ainda que represente uma evolução em relação aos seus antecessores, o jogo mantém-se fiel à estrutura clássica dos JRPGs lineares, alternando entre diferentes pontos de interesse, como Tóquio, o Mundo Digital, as masmorras e o Teatro, locais onde podemos comprar itens, combater, aprimorar atributos, desbloquear novas evoluções e habilidades, entre entre outras.

As cidades e vilas estão repletas de personagens e Digimon com quem podemos interagir, o que ajuda a criar uma sensação de vida e movimento constante. Apesar da estrutura algo limitada, marcada por paredes invisíveis e percursos estreitos, o jogo em certos casos, consegue fazer com que o cenário pareça mais do que um simples pano de fundo.

O contraste visual é evidente, há áreas excessivamente monótonas e desprovidas de identidade, mas também locais vibrantes e detalhados. Ainda assim, muitas destas áreas poderiam ter sido mais amplas e cativantes de explorar como vimos por exemplo em Shin Megami Tensei V.

As masmorras, por sua vez, seguem uma filosofia semelhante, lineares e pouco inspiradas, mas funcionais. Servem no fundo para sustentar o combate e a progressão da narrativa. Algumas conseguem destacar-se graças a pequenas mecânicas que quebram a monotonia, mas, de um modo geral, o design raramente surpreende.

O sistema de evolução exige estudo, mas com o tempo torna-se acessível.

Pela primeira vez num jogo Digimon temos presente mais de 400 Digimon, tornando o sistema de criação e evolução um dos mais ambiciosos da franquia. Digo-vos já que grande parte do nosso tempo é passada no menu de gestão, analisando estatísticas, distribuindo itens, criando novas criaturas e sacrificando outras, num sistema que pode parecer complexo, mas que se revela viciante.

O sistema divide-se em três pontos. O primeiro é que a Digievolução não é linear: cada Digimon pode evoluir para múltiplas formas, dependendo de diversos fatores. O segundo é a possibilidade de retroceder a digievolução, uma mecânica extremamente útil para atingir certos objetivos na evolução das nossas criaturas. O terceiro é o próprio processo de criação: em vez de capturar os Digimon, a sua criação resulta de dados recolhidos em combate. Quanto mais vezes derrotamos uma determinada espécie, maior é a percentagem de dados que obtemos; ao atingir 100%, podemos criar essa criatura, e se chegarmos aos 200%, as suas estatísticas iniciais serão significativamente melhores.

A evolução de um Digimon depende de um impressionante conjunto de variáveis que alternam entre alcançar determinados valores em atributos específicos, possuir uma personalidade compatível, cumprir requisitos de nível, entre outros. Este sistema leva-nos a experimentar várias fórmulas, a estudar como obter um Digimon específico, uma nova evolução ou até mesmo habilidades. Pessoalmente, gostei dos momentos em que me dediquei a analisar os requisitos necessários para atingir os objetivos que pretendia. Pode parecer um processo exigente no início, mas a sensação de conquista ao obter o Digimon desejado é profundamente satisfatória e uma das recompensas mais gratificantes da experiência.

As animações dos Digimon estão espetaculares.

Quanto aos gráficos, Digimon Story: Time Stranger deixa uma impressão algo ambígua, oscilando entre momentos agradáveis e outros menos notáveis. O que espanta é, sem dúvida, os modelos e animações dos Digimon, que em muitos casos iguala, ou até supera, a qualidade do próprio anime. Os ataques característicos de cada criatura foram recriados com fidelidade e detalhe, proporcionando momentos de pura alegria e nostalgia. As sequências cinematográficas também apresentam boa qualidade e acrescentam emoção às cenas importantes da narrativa.

Dentro do jogo, encontramos um minijogo de cartas que transporta os jogadores de volta aos anos 90, com regras simples e intuitivas.

No entanto, o seu mundo nem sempre tem a mesma qualidade. Em várias ocasiões, o ambiente parece rígido e datado, com animações, efeitos visuais e texturas que denunciam limitações técnicas e artísticas. Apesar de ser um projeto mais ambicioso do que Digimon Story: Cyber Sleuth, o jogo sofre de problemas inesperados, como travagens, quedas de desempenho e texturas que demoram a carregar, algo difícil de justificar nesta geração de consolas.

Em contrapartida, o som destaca-se como um dos grandes trunfos da experiência. A dobragem, disponível em japonês e inglês, é de excelente qualidade, transmitindo personalidade e emoção às personagens, embora as legendas estejam apenas em inglês. A banda sonora é variada e envolvente, alternando entre melodias emocionais e temas electrónicos energéticos, acompanhando na perfeição o tom de cada momento. Contudo, é uma pena que algumas das faixas clássicas dos animes e filmes estejam disponíveis como conteúdo pago.

Estamos diante um título equilibrado, que consegue preservar o espírito tradicional da série ao mesmo tempo que introduz novas ideias. Apesar de considerar que o level design e o aspeto gráfico poderiam ter ido mais longe, o jogo compensa com uma narrativa interessante e um sistema de evolução progressivamente mais recompensador.

Digimon Story: Time Stranger é sem dúvida uma carta de amor aos fãs de longa data e uma proposta que, em muitos momentos, faz-nos sentir que estamos a experienciar verdadeiramente uma aventura dentro do mundo virtual dos Digimon.

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