
Janeiro de 2026 traz ao Museu do Oriente um ciclo de cinema dedicado a práticas tradicionais japonesas que enfrentam a inevitabilidade da mudança. A programação, organizada em colaboração com a Embaixada do Japão e a Japan Foundation, apresenta três filmes que nunca chegaram ao circuito comercial português e que partilham um tema central: como preservar o que é ancestral num mundo que avança depressa demais.
As sessões decorrem em três sábados consecutivos, dias 10, 17 e 24 de janeiro, sempre com duas projeções por dia às 15h00 e às 17h30. A entrada é gratuita, mediante levantamento de bilhete no próprio dia no auditório do museu, na Doca de Alcântara Norte.
Yudo: o banho japonês como ritual sagrado
Yudo: The Way of the Bath (Yudo. O Banho Japonês), realizado por Masayuki Suzuki em 2022, é uma comédia que trata o banho público com a mesma seriedade com que outros filmes abordam artes marciais. O argumento é de Kundō Koyama, o mesmo argumentista do filme vencedor do Óscar Departures.
A história centra-se em dois irmãos que herdam o Marukin, um sentō tradicional da era Showa deixado pelo pai recentemente falecido. Gorō, interpretado por Gaku Hamada, gere o estabelecimento com a ajuda da entusiasta Izumi, personagem de Kanna Hashimoto. Os clientes são um pequeno grupo de habitantes locais com as suas peculiaridades. A rotina é perturbada quando o irmão mais velho, Shirō, regressa à cidade.
Shirō, interpretado por Tōma Ikuta, é um arquiteto que falhou em Tóquio. Como co-proprietário da casa de banhos após a morte do pai, planeia demolir o edifício e construir apartamentos no terreno. Gorō opõe-se ferozmente ao plano, enquanto os frequentadores do estabelecimento também se mobilizam para salvar o seu refúgio.
O filme ganhou o prémio de audiência no Udine Far East Film Festival, confirmando a sua capacidade de conquistar públicos ocidentais. A crítica destacou a forma como Suzuki recriou meticulosamente a fachada art déco do Marukin, com atenção a detalhes como a ferrugem, as telhas de mosaico gastas e a fornalha que bate no coração do edifício.
Sob o céu aberto: quando a prisão é o único lar
Under the Open Sky (Sob o Céu Aberto), realizado por Miwa Nishikawa em 2020, oferece um contraste dramático com o tom mais ligeiro de Yudo. Baseado no romance Mibuncho de Ryūzō Saki, o filme acompanha Mikami, um ex-membro da yakuza libertado após cumprir 13 anos de prisão por homicídio.
Koji Yakusho, no papel principal, oferece aquilo que a crítica classificou como uma interpretação monumental, possivelmente a melhor da sua carreira. Mikami é apresentado como um homem de meia-idade que passou a maior parte da vida atrás das grades. Ao ser libertado, espera encontrar a mãe que o abandonou quando era criança.
Mas a sociedade japonesa não oferece segundas oportunidades facilmente. Como o próprio Mikami observa num dos momentos mais impactantes do filme: “A prisão é o único lugar que não te expulsa, não importa quão mal te comportes”.
Determinado a reconstruir a vida, Mikami muda-se para Tóquio com a intenção de seguir o caminho certo. Problemas de saúde, o seu estatuto de ex-presidiário e explosões de raiva dificultam a manutenção de empregos normais. É seguido por Tsunoda, um realizador em dificuldades interpretado por Taiga Nakano, que pretende fazer um documentário televisivo sobre a sua reintegração.
O título japonês original, Subarashiki Sekai, traduz-se como Mundo Maravilhoso, carregando conotações simultaneamente irónicas e caricatas.
A realizadora, nascida em Hiroshima em 1974, é uma das principais cineastas japonesas contemporâneas. O seu filme Dear Doctor, de 2009, ganhou múltiplos prémios, incluindo o Japan Academy Film Prize para Melhor Argumento em 2010.
Under the Open Sky estreou no Toronto International Film Festival em 2020 e arrecadou 4,7 milhões de dólares nas bilheteiras japonesas. A crítica realçou a forma como Nishikawa equilibra as desgraças de Mikami com a bondade de pessoas comuns que encontra pelo caminho, criando simultaneamente uma acusação social abrasadora e uma afirmação sobre o poder da empatia humana.
A rapariga da laca Tsugaru: quando tradições sufocam gerações
Tsugaru Lacquer Girl (A Rapariga da Laca Tsugaru), realizado por Keiko Tsuruoka em 2023, completa o ciclo com uma história sobre artesanato tradicional e conflitos de género na sociedade japonesa contemporânea.
O filme centra-se em Miyako, interpretada por Mayu Hotta, uma jovem de 23 anos de Hirosaki, na prefeitura de Aomori. Ela trabalha sem entusiasmo num supermercado para ajudar a família, mas dedica-se verdadeiramente a auxiliar o pai, Seishiro, artesão de laca Tsugaru.
O trabalho de laca Tsugaru é um dos mais exigentes do artesanato japonês tradicional. Conhecido em japonês como baka-nuri, literalmente “pintura de idiotas”, exige que os artesãos apliquem incontáveis camadas de laca a uma tigela ou outro objeto antes de ser considerado completo.
Seishiro herdou o negócio do pai, um mestre respeitado que ganhou o Prémio do Ministério da Educação. Mas a indústria está em declínio. A mãe abandonou a família devido às dificuldades económicas e à obsessão do marido com o trabalho. O irmão mais velho, Yū, interpretado por Ryota Bando, escolheu ser cabeleireiro em vez de assumir o negócio familiar.
Miyako ama profundamente o ofício, mas não consegue declarar abertamente o desejo de seguir carreira na laca Tsugaru. Na sociedade tradicional japonesa, especialmente no interior, o patriarcado ditava que o filho mais velho deveria herdar o negócio familiar. Era esperado que as mulheres casassem e tivessem filhos, não que se tornem artesãs.
O título japonês, Bakanuri no Musume, traduz-se como “Filha da Pintura Idiota”. Mas também pode ser interpretado como uma referência a quem persiste numa tarefa aparentemente impossível, aplicando camada após camada até atingir a perfeição.
O filme de Tsuruoka é simultaneamente tradicional e contemporâneo, misturando suavemente políticas de género e sexualidade do presente com o drama doméstico japonês clássico. O filme inclui ainda uma subtrama sobre o irmão Yū, que é gay, adicionando outra camada de complexidade às questões de tradição versus modernidade.
As cenas de produção de laca foram filmadas numa oficina real, capturadas meticulosamente numa sequência que dura mais de quatro minutos. Os dialetos locais falados pelos atores nascidos em Aomori são tão autênticos que até falantes nativos de japonês podem achar algumas partes desafiantes de entender.
O filme baseia-se no romance Dignidade Japonesa de Miyuki Takamori e foi distribuído pela Happinet Phantom Studios em setembro de 2023.
Detalhes:
O ciclo decorre no Auditório do Museu do Oriente, na Avenida Brasília, Doca de Alcântara Norte, 1350-352 Lisboa. A entrada é gratuita mas requer levantamento de bilhete no próprio dia da exibição.
A programação distribui-se da seguinte forma:
10 de janeiro (sábado)
- 15h00: Yudo. O Banho Japonês
- 17h30: Sob o Céu Aberto
17 de janeiro (sábado)
- 15h00: A Rapariga da Laca Tsugaru
- 17h30: Yudo. O Banho Japonês
24 de janeiro (sábado)
- 15h00: A Rapariga da Laca Tsugaru
- 17h30: Sob o Céu Aberto
Cada filme tem legendas e a duração varia entre 81 e 132 minutos, dependendo da obra.
Para mais informações, os interessados podem consultar o site oficial do Museu do Oriente ou contactar diretamente o museu através do número 213 585 200.
Um Japão para além do estereótipo
Este ciclo desafia os estereótipos habituais sobre o Japão que dominam o cinema comercial ocidental. Não há samurais, robôs gigantes, ou histórias de amor impossível em Tóquio. Em vez disso, há pessoas comuns a enfrentar dilemas profundamente humanos sobre identidade, pertença, legado e mudança.
São filmes que exigem paciência do espectador, tal como a laca Tsugaru exige paciência do artesão ou o banho adequado exige paciência do frequentador do sentō. Mas, tal como essas práticas tradicionais, a recompensa está precisamente na lentidão, na atenção aos detalhes, na recusa em apressar processos que exigem tempo para serem apreciados na sua totalidade.
Numa era de consumo cultural acelerado, onde filmes são devorados em velocidade dupla e séries maratonadas num fim de semana, há algo profundamente contracultural em sentar-se numa sala escura e deixar que um filme japonês sobre a arte de tomar banho se desenrole ao seu próprio ritmo.
Talvez seja exatamente isso que estas tradições japonesas têm para ensinar ao resto do mundo, que algumas coisas não podem nem devem ser aceleradas, que a excelência requer tempo, que comunidades se constroem através de rituais partilhados, e que o que parece obsoleto pode conter sabedoria essencial para navegar o futuro.









