
A Cloudflare divulgou no seu mais recente relatório de transparência um aumento dramático de 3800% nas ações de remoção relacionadas com direitos de autor durante o primeiro semestre de 2025. A empresa americana, que alimenta aproximadamente 20% da web, processou 54.357 pedidos de remoção de conteúdo alojado, comparado com apenas 1.394 no semestre anterior, marcando uma mudança significativa na sua abordagem ao combate à pirataria.
O salto espetacular resulta principalmente de uma nova estratégia implementada pela empresa no início do ano. Justin Paine, vice-presidente de Trust & Safety da Cloudflare, revelou que a companhia começou a colaborar ativamente com detentores de direitos para combater transmissões ilegais de eventos desportivos, oferecendo acesso direto a uma API dedicada que permite automatizar pedidos de remoção.
Entre janeiro e junho de 2025, a Cloudflare recebeu 124.872 queixas relacionadas com serviços de alojamento, das quais mais de 54 mil resultaram em ações concretas. Esta automação tornou-se particularmente eficaz para conteúdos sensíveis ao tempo, como transmissões desportivas ao vivo, onde a velocidade de resposta é crucial. O tempo médio de reação diminuiu significativamente, permitindo que violações fossem tratadas em minutos em vez de horas.
A colaboração não se limitou a remover conteúdos individuais. Utilizando insights obtidos através destes relatórios automatizados, a Cloudflare identificou padrões de comportamento abusivo que resultaram na terminação de 21.218 contas de armazenamento R2 no mesmo período. Destas, 19.817 foram processadas automaticamente, demonstrando a escala industrial que a operação atingiu.
A evolução dos números conta uma história clara sobre a crescente pressão sobre infraestruturas de Internet. Em 2023, a Cloudflare processava centenas de relatórios semestrais. No primeiro semestre de 2024, esse número saltou para cerca de 11 mil. O salto para 125 mil relatórios em 2025 representa não apenas maior volume de pirataria, mas fundamentalmente uma mudança na estratégia de enforcement dos detentores de direitos.
A empresa norte-americana encontra-se numa posição única e delicada. Como fornecedora de serviços CDN e segurança, a Cloudflare tradicionalmente não intervinha contra clientes que utilizavam os seus serviços de passagem. Durante anos, limitava-se a encaminhar notificações de remoção para os respetivos serviços de alojamento. Esta abordagem hands-off gerou críticas persistentes de detentores de direitos, que acusavam a empresa de proteger sites piratas através do anonimato.
A mudança de postura reflete uma realidade comercial e legal em transformação. A Cloudflare começou também a bloquear voluntariamente sites piratas no Reino Unido, baseando-se em ordens judiciais de bloqueio onde não era parte. Esta aproximação voluntária espelha a estratégia que a Google adota em vários países, sinalizando uma tentativa de encontrar terreno comum com detentores de direitos sem comprometer princípios fundamentais.
“Os nossos esforços no Reino Unido para bloquear conteúdo baseado numa conclusão de infração numa ordem dirigida a terceiros refletem o nosso desejo de experimentar abordagens mais direcionadas do que o bloqueio excessivo que temos visto noutros países da Europa,” afirmou Paine no relatório. Quando a empresa toma ação sobre domínios com base nestas ordens, apresenta uma página intersticial com código de status 451 que direciona visitantes para a ordem específica, incluindo um processo para partes afetadas contestarem o bloqueio.
Contudo, existe uma linha vermelha que a Cloudflare não está disposta a cruzar: o bloqueio através do seu resolver DNS público 1.1.1.1. O relatório de transparência é explícito: “Até à data, a Cloudflare não bloqueou conteúdo através do 1.1.1.1 Public DNS Resolver”. A empresa considera que exigências para bloquear através de DNS público vão contra o desejo de uma Internet aberta e exigiriam a criação de ferramentas contrárias ao design do resolver.
Esta posição coloca a Cloudflare em rota de colisão direta com alguns detentores de direitos europeus, particularmente em Espanha. A liga de futebol espanhola LaLiga emergiu como o adversário mais vocal, implementando medidas de bloqueio de endereços IP que causaram danos colaterais massivos a utilizadores legítimos.
Desde fevereiro de 2025, operadores de telecomunicações espanhóis foram obrigados a bloquear infraestruturas da Cloudflare para cumprir ações de bloqueio de endereços IP direcionadas a transmissões desportivas ilegais. O resultado foi caótico, durante jogos da LaLiga, milhares de sites legítimos tornaram-se inacessíveis, incluindo Google Fonts, sites institucionais, servidores de jogos e até serviços de emergência.

Justin Paine criticou especificamente a LaLiga pela sua abordagem “desajeitada” e postura “sem remorsos”. “O efeito desproporcional do bloqueio de endereços IP é bem conhecido. A LaLiga não demonstrou qualquer arrependimento por causar o bloqueio de inúmeros sites não relacionados, sugerindo que os seus interesses comerciais devem sobrepor-se aos direitos dos utilizadores espanhóis de Internet de aceder à Internet mais ampla durante os tempos de jogo,” nota Paine no relatório.
Matthew Prince, CEO da Cloudflare, foi ainda mais direto nas redes sociais: “A estratégia de bloquear amplamente através de ISPs baseada em IPs é absurda porque tanto conteúdo, incluindo conteúdo de serviços de emergência, pode estar por trás de qualquer IP. O dano colateral é vasto e está a prejudicar cidadãos espanhóis de acederem a recursos críticos”.
A LaLiga respondeu com acusações graves num comunicado oficial de fevereiro de 2025, alegando que a Cloudflare facilita ativamente atividades ilegais como tráfico humano, prostituição, pornografia, contrafação e fraudes. A organização afirmou que mais de 50% dos IPs piratas que distribuem ilegalmente conteúdo LaLiga estão protegidos pela Cloudflare, e que a empresa recusou repetidamente cooperar voluntariamente.
A Cloudflare, juntamente com a organização de cibersegurança espanhola RootedCON, interpôs recurso judicial em fevereiro de 2025, argumentando que as medidas eram desproporcionadas e bloqueavam milhões de utilizadores de aceder a sites e serviços legítimos. O Tribunal Comercial nº 6 de Barcelona rejeitou o recurso em março de 2025, impedindo apelações adicionais através dos tribunais espanhóis, embora permaneça a possibilidade de recurso a nível europeu.
O problema não é exclusivo de Espanha. Operadores em Itália também foram obrigados a bloquear a infraestrutura da Cloudflare para cumprir ordens semelhantes. Em França, o Canal+ conseguiu uma vitória legal sem precedentes ao obter uma ordem judicial contra resolvers DNS públicos, incluindo Cloudflare e Google, para negar acesso a listas de sites de streaming.
A pressão sobre infraestruturas de Internet está a intensificar-se em toda a Europa. Em maio de 2025, o Tribunal Judicial de Paris ordenou que cinco dos principais fornecedores de VPN, incluindo NordVPN, ExpressVPN, Surfshark, Proton VPN e CyberGhost, bloqueassem acesso a mais de 200 sites desportivos ilegais. Itália partilhou planos para estender obrigações anti-pirataria a fornecedores de DNS e VPN, enquanto Portugal e Bélgica exploram táticas semelhantes.
O bloqueio geográfico através de CDN também permanece uma área ativa. Em resposta a várias ordens judiciais ou autoridades reguladoras, a Cloudflare tem geo-bloqueado acesso a vários domínios que utilizam os seus serviços de passagem CDN. O relatório deixa claro que a pressão de bloqueio está a aumentar, com a maioria dos pedidos a provir de França.
Num desenvolvimento particularmente significativo, a Cloudflare reportou ter recebido notificações oficiais do governo em França e Bélgica sobre sites que utilizam os seus serviços alojados estarem a oferecer serviços de jogo ilegalmente nessas jurisdições, expandindo as áreas para as quais o bloqueio tem sido exigido.
A empresa também enfrentou consequências legais noutras jurisdições. Em novembro de 2025, um juiz japonês decidiu a favor das editoras Shueisha, Kodansha, Shogakukan e Kadokawa Shoten, que processaram a Cloudflare alegando que o serviço distribuía dados para sites de pirataria de mangá. Embora o tribunal reconhecesse aproximadamente 3,6 mil milhões de ienes em danos, ordenou à Cloudflare pagar 500 milhões de ienes (cerca de 3,6 milhões de dólares), considerando a empresa apenas parcialmente responsável.
Pirataria de mangá no Japão: Cloudflare condenada a pagar 3,2 milhões de dólares
Apesar da cooperação aumentada em algumas áreas, a Cloudflare mantém-se firme em certos princípios. A empresa continua a litigar contra esforços que a obriguem a construir capacidades de bloqueio DNS, considerando tais exigências incompatíveis com os fundamentos da Internet. “A Cloudflare procurou soluções legais antes de cumprir com pedidos para bloquear acesso a domínios ou conteúdo através do 1.1.1.1 Public DNS Resolver ou identificou mecanismos alternativos para cumprir com ordens judiciais relevantes,” afirma o relatório.
A tensão entre proteção de propriedade intelectual e preservação de uma Internet aberta e acessível nunca foi tão aguda. Enquanto detentores de direitos argumentam que medidas agressivas são necessárias para proteger investimentos multi-milionários em conteúdo desportivo, empresas de infraestrutura como a Cloudflare alertam que bloqueios indiscriminados criam precedentes perigosos que podem fragmentar a Internet e prejudicar utilizadores inocentes.
A abordagem automatizada através de API provou ser uma solução parcial que satisfaz algumas necessidades de detentores de direitos sem comprometer a arquitetura fundamental da Internet. Contudo, as crescentes exigências de bloqueio ao nível de DNS e IP sugerem que este equilíbrio permanece precário.
Com o volume de enforcement a aumentar dramaticamente e pressões legais a intensificar-se em múltiplas jurisdições, parece provável que o volume de ações anti-pirataria continue a crescer nos próximos anos. A Cloudflare encontra-se numa posição cada vez mais desconfortável: cooperar suficientemente para evitar litígios paralisantes, mas resistir firmemente a exigências que considera fundamentalmente prejudiciais à saúde da Internet global.
Os dados do primeiro semestre de 2025 representam apenas o início desta transformação. À medida que mais detentores de direitos ganham acesso a ferramentas automatizadas e tribunais em toda a Europa emitem ordens de bloqueio mais amplas, a indústria de infraestrutura de Internet enfrenta decisões difíceis sobre onde traçar linhas e como equilibrar interesses comerciais, obrigações legais e compromissos com uma Internet aberta e acessível.










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