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Governo japonês expõe o lado negro do anime e os números são aterradores

Anime vale 25 mil milhões mas 60% dos estúdios está a perder dinheiro: como é isto possível?

Rin Kurusu screenshot Believer draw manga (3)

A indústria do anime japonesa enfrenta um dos seus momentos mais críticos. A Comissão de Comércio Justo do Japão (JFTC) divulgou esta semana um relatório que identifica práticas comerciais generalizadas que poderão constituir violações da Lei Antimonopolio e da Lei de Subcontratação. Os números são alarmantes e revelam uma indústria que, apesar do sucesso global, mantém os seus criadores numa posição de extrema vulnerabilidade.

A investigação decorreu durante todo o ano de 2025 e envolveu questionários a 417 empresas de produção (com 130 respostas válidas), inquéritos a mais de 1900 freelancers (165 respostas detalhadas) e entrevistas aprofundadas a 75 entidades. Adicionalmente, um formulário de denúncias lançado em janeiro de 2025 recolheu 219 relatos específicos de condutas potencialmente ilegais.

Trabalhar sem contrato é a norma

Um dos dados mais chocantes revela que 45,3% dos estúdios principais não recebem qualquer contrato escrito até depois de terem iniciado a produção. Pior ainda, em alguns casos, o contrato só chega quando o trabalho já está completamente terminado. Apenas 15,1% dos estúdios principais reportaram receber um contrato escrito com detalhes de pagamento e trabalho no momento em que aceitam a encomenda.

Esta prática deixa os estúdios completamente desprotegidos do ponto de vista legal. Como começam a trabalhar sem termos definidos, ficam numa posição negocial extremamente fraca, já gastaram recursos e dinheiro, e são efetivamente forçados a aceitar condições abusivas apenas para garantir que recebem pagamento. O relatório da JFTC avisa que isto constitui provavelmente “Abuso de Posição Superior de Negociação”, uma figura legal que descreve situações onde uma empresa poderosa intimida um parceiro mais pequeno porque este não tem alternativas.

Embora 86,8% dos estúdios reportem que os orçamentos de produção aumentaram na última década, a realidade financeira conta outra história, 60% dos estúdios opera com prejuízos se depender apenas dessas tarifas de produção. As razões são múltiplas, exigências de qualidade “ao nível de cinema” para séries de televisão, calendários de produção estendidos sem compensação extra, e a inflação que corrói os valores pagos.

Este fenómeno tem um nome no relatório: “boom sem lucros“. Enquanto a indústria bate recordes de receitas (o mercado atingiu 25 mil milhões de dólares em 2024), os estúdios de produção recebem apenas 13% do valor total do mercado. O resto fica com os comités de produção, conglomerados de investidores que financiam os projetos mas retêm os direitos de propriedade intelectual.

Trabalho extra gratuito: 83% dos estúdios fazem, mas 22,7% nunca recebe nada

O relatório identifica outra prática potencialmente ilegal, os “retrabalhos”. 83% dos estúdios enfrentam custos por ter de corrigir cenas ou alterar estilos artísticos, mas quase um quarto (22,7%) não recebe um único iene por esse trabalho adicional. A JFTC marcou isto como um potencial “Abuso de Posição Superior de Negociação”.

Para os freelancers, que constituem entre 50% a 70% da força de trabalho do anime, a situação é ainda mais precária. Apenas 38,9% recebe termos escritos no início de um projeto, enquanto 16% só os recebe depois do trabalho estar concluído. Esta falta de contratos detalhados expõe os criadores ao chamado “scope creep”, situações onde o trabalho se torna maior ou mais complexo do que o originalmente planeado, sem qualquer pagamento extra.

Os dados são brutais, 44,4% dos freelancers reportaram receber encomendas urgentes de última hora sem qualquer pagamento adicional, e 38,9% experienciou retrabalhos não compensados por razões que não lhes eram imputáveis. Só 9,7% dos freelancers disse que pagamentos extra por prazos curtos foram discutidos ou acordados antecipadamente.

Direitos de autor: o roubo legalizado

Talvez o aspeto mais perverso do sistema seja a transferência de direitos de autor. O relatório revela que 84,9% dos estúdios são obrigados a ceder todos os direitos de autor ao Comité de Produção. Embora 39,6% dos inquiridos digam que são “frequentemente pagos” por esta transferência, uma análise mais profunda revela que este pagamento está tipicamente “incluído na tarifa de produção” em vez de ser um pagamento separado e claramente definido.

A JFTC avisa que, dado que 60% dos estúdios operam com prejuízos, a tarifa base de produção mal cobre o custo real de fazer o anime. Isto significa que a transferência de direitos de autor está efetivamente a acontecer gratuitamente. Os estúdios estão a ser despojados de um ativo valioso de longo prazo sem receber qualquer compensação distinta por isso.

O relatório sugere que esta prática constitui provavelmente um Abuso de Posição Superior de Negociação, já que os estúdios estão a ser despojados de propriedade intelectual valiosa sem compensação adequada.

Rin Kurusu screenshot Believer draw desenho (2)

Atrasos nos pagamentos e pressão em cascata

A pressão financeira não se fica pelos estúdios principais. O inquérito descobriu que 26,6% dos estúdios subcontratados reportaram atrasos nos pagamentos superiores ao limite legal de 60 dias. A falta de transparência de dados também foi identificada como uma barreira crítica ao comércio justo, metade das empresas de produção principais reportou que dados de audiência (contagens de visualizações, demografia) são “frequentemente não divulgados” ou apenas partilhados mediante pedido.

A JFTC declarou que reter estes dados de desempenho impede negociações racionais para renovações contratuais, e avisou que esconder esta informação pode constituir Abuso de Posição Superior de Negociação se impedir um estúdio de valorizar adequadamente o seu trabalho.

A indústria em números: sucesso global, miséria local

O contraste é gritante. Enquanto o mercado global de anime atingiu 25 mil milhões de dólares em 2024, com receitas internacionais a ultrapassarem as domésticas pela primeira vez desde a pandemia, os trabalhadores da indústria sofrem. Dados da Associação de Animação Japonesa revelam que o mercado de produção atingiu 466,2 mil milhões de ienes (3,06 mil milhões de dólares) em 2024, um recorde, mas 32% dos estúdios de produção operaram com prejuízos.

Animadores no início dos seus vinte anos ganham menos de 2 milhões de ienes anuais (cerca de 12.948 dólares), significativamente menos que a média dos residentes de Tóquio da mesma idade, e menos de metade do que animadores de nível inicial ganham nos Estados Unidos.

O relatório da Teikoku Databank indica que entre janeiro e setembro de 2025, oito empresas de produção de anime saíram do mercado, incluindo duas falências e seis encerramentos. Este é o terceiro ano consecutivo em que o número de estúdios a fechar aumentou, colocando 2025 em vias de igualar 2018 (com 16 casos) como o pior ano de sempre para falências de estúdios.

Contexto internacional e pressão para mudança

Esta investigação da JFTC não surge do nada. Em maio de 2024, um relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas criticou especificamente a indústria do anime japonesa pelas suas “horas de trabalho excessivamente longas” e baixos salários. Esta crítica foi particularmente impactante considerando que o governo japonês tem promovido ativamente o anime como pedra angular da sua iniciativa “Cool Japan”, desenhada para aumentar o soft power da nação globalmente.

Em novembro de 2024, uma nova lei entrou em vigor para proteger freelancers, que constituem a maioria da força de trabalho do anime. A lei exige contratos escritos que especifiquem pagamento e condições de trabalho, proíbe exigências de trabalho não compensado, e requer pagamento dentro de 60 dias.

No entanto, como nota este relatório, a implementação está a revelar-se difícil. Ao contrário de outros países, os sindicatos praticamente não existem na indústria do anime japonesa. Apesar do pagamento pobre e condições de trabalho duras, muitas pessoas sonham trabalhar no mundo do anime desde a infância, e esta paixão é explorada pela indústria.

Helder Archer
Helder Archer
Fundou o OtakuPT em 2007 e desde então já escreveu mais de 60 mil artigos sobre anime, mangá e videojogos.

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