Mais...
    InícioAnimePolítico japonês acusa anime de promover tráfico humano

    Político japonês acusa anime de promover tráfico humano

    Fujiwara Norimasa do Partido Democrático Constitucional vinculou sem provas imagem publicitária de Strawberry Marshmallow a crimes de exploração sexual

    Strawberry Marshmallow screenshot

    Um cartaz publicitário com quase 20 anos acendeu uma tempestade política no Japão. A imagem, um anúncio antigo da estação de Akihabara que promovia a série de anime Strawberry Marshmallow de 2005, foi partilhada nas redes sociais e tornou-se viral com milhões de visualizações. O que deveria ser uma viagem nostálgica pela publicidade do bairro geek de Tóquio transformou-se num campo de batalha sobre liberdade de expressão, moralismo político e a instrumentalização da ficção para ganhos políticos.

    Tudo começou quando uma conta dedicada a anime publicou a imagem, uma personagem infantil da série slice-of-life com uma boia de natação e óculos de mergulho, claramente preparada para um dia na praia ou piscina. A série, criada por Barasui, estreou em 2005 e conta as aventuras quotidianas de quatro meninas e a sua figura de irmã mais velha. O tagline do anime é simples: “Cute is justice” (o fofo é justiça).

    Fujiwara Norimasa, político do Partido Democrático Constitucional do Japão, decidiu citar o tweet e lançar uma condenação incendiária que rapidamente se virou contra ele: “É porque toleramos este tipo de conteúdo repulsivo que homens nojentos que ‘compram’ vítimas tailandesas de tráfico de 12 anos andam pelas nossas ruas a babar-se. Isto tem de ser erradicado”.

    A declaração provocou uma onda de indignação imediata. Uma nota de contexto comunitária foi rapidamente adicionada ao tweet, esclarecendo que a imagem tinha cerca de 20 anos, que Strawberry Marshmallow é uma série de comédia não-sexual sobre jovens meninas, e que não tem qualquer relação com crimes recentes. A nota sublinhou o óbvio, conectar um trabalho de ficção inofensivo a casos reais de tráfico humano sem qualquer base factual é desinformação.

    Entre as respostas mais fortes veio de Zenko Kurishita, activista anti-censura conhecido, antigo membro da Assembleia Metropolitana de Tóquio e autor especializado na história do mangá e regulação dos media. Kurishita não poupou palavras: “Sabias que esta foto é de há cerca de 20 anos? Alguma vez assististe à obra? De uma perspetiva estreita, rotulaste-a de ‘repulsiva’ ou ‘conteúdo de que pedófilos gostariam’, e sem qualquer base, conectaste-a a crimes graves e ameaças de ‘erradicá-la’. A posição do Partido Democrático Constitucional sobre liberdade de expressão está acabada. É dececionante, embora não surpreendente”.

    A série Strawberry Marshmallow estreou na televisão japonesa em 2005, produzida pelo estúdio Daume. Três episódios OVA foram lançados entre fevereiro e abril de 2007, seguidos por mais dois episódios OVA em 2009 sob o título Ichigo Mashimaro Encore. A obra nunca foi controversa na sua altura. Classificada para +13, a série de comédia focava-se nas interações inocentes e quotidianas entre as personagens. O anúncio em questão promovia o lançamento dos DVDs da série, algo comum na Akihabara daquela época.

    Os comentários em resposta a Norimasa revelam a dimensão da reação pública. Um utilizador questionou: “Que prova existe de que banir desenhos reduziria crimes sexuais contra menores?”. outro apontou o absurdo da acusação: “Ela nem sequer está numa pose sedutora. Tem uma boia e óculos – é obviamente uma cena de ir brincar na praia ou piscina. Se olhas para isso e pensas ‘sexual’ em vez de ‘fofo’ ou ‘parece divertido’, estás basicamente a apresentar-te como ‘eu é que sou o pervertido aqui'”.

    Vários comentários destacaram a natureza descontextualizada da acusação: “Isto foi originalmente um cartaz de há 20 anos. Havia até uma versão de inverno onde ela está totalmente vestida, feita simplesmente para parecer fofa. Diz-me uma coisa – entre um funcionário público que pega numa imagem recortada e descontextualizada e a vincula forçosamente a crimes que não têm conexão, e um cartaz promocional feito por pessoas que amam a obra… qual é que é realmente repulsivo?”.

    A questão temporal foi levantada repetidamente: “Só agora estás a decidir que um cartaz que existiu em Akihabara há 20 anos é um problema?”, um utilizador foi mais direto: “Esta foto é de cerca de 2005-2008. Por favor explica porque estás a desenterrá-la agora. Além disso, fornece evidência objetiva para a tua afirmação de que um anúncio de anime com quase 20 anos está conectado ao incidente recente de Yushima”.

    Alguns comentários tentaram educar o político sobre a obra em si: “Meu… claramente não entendes nada, então deixa-me explicar. Primeiro, esta personagem é do mangá Strawberry Marshmallow. Olha com atenção para o anúncio – diz que os DVDs estão à venda. A OVA saiu em 2007. O anime foi ao ar em 2005. É uma série slice-of-life suave e fofa. Não há nada sexual ou ‘lolicon’ nisso. Esse é o ponto de partida”.

    A acusação de difamação foi levantada por vários utilizadores: “Estás a criar pânico e a insinuar que esta obra específica é de alguma forma responsável pelo tráfico humano. Isso é claramente difamação. Uma nota comunitária já foi adicionada, então se alguém pode editá-la, por favor trate-a de uma perspetiva neutra”.

    Outros apontaram a lógica falha do argumento: “Isso é um salto e peras. Por essa lógica, se lês One Piece, toda a gente se torna pirata?”, outro comentário: “Se alguém vê esta imagem e pensa ‘Sim! Vou comprar uma menina jovem!’, essa pessoa já era perigosa para começar lol”.

    Ministra japonesa assume-se otaku e defende anime contra censura

    A questão de um funcionário público usar a sua posição para atacar uma obra específica também foi sublinhada: “Um funcionário público chamar a uma obra específica ‘repulsiva’ baseado em preferência pessoal é um problema sério. Chamar uma obra repulsiva é essencialmente tirar trabalho ao seu criador – matá-los socialmente. Isso é completamente fascista”.

    Kurishita, que tem um historial extenso de defesa da liberdade de expressão em mangá, anime e videojogos, é uma figura conhecida nestes debates. Eleito pela primeira vez para a Assembleia Metropolitana de Tóquio em 2009 com 26 anos, opôs-se à Ordenança Metropolitana de Tóquio Relativa ao Desenvolvimento Saudável dos Jovens com base na liberdade de expressão, chegando a ter embates verbais com o então governador de Tóquio, Shintaro Ishihara, sobre regulação de “jovens inexistentes” em 2010.

    O Partido Democrático Constitucional do Japão, ao qual Norimasa pertence, é o principal partido de centro-esquerda do país e o segundo maior no Parlamento Nacional atrás do Partido Liberal Democrático governante. Fundado em outubro de 2017, o partido defende constitucionalismo, pacifismo sob o Artigo 9 da constituição japonesa, políticas de bem-estar expandidas, igualdade de género e energias renováveis. A posição oficial do partido inclui proteção dos direitos humanos básicos e democracia de base.

    O incidente levanta questões mais amplas sobre o papel dos políticos na discussão pública sobre cultura popular. Fãs e artistas argumentam que este episódio representa uma tendência perigosa onde moralizadores em posições de poder podem criar pânico ao conectar descuidadamente obras inofensivas a crimes horríveis. A histeria sobre representações ficcionais, argumentam, não tem impacto no comportamento criminoso do mundo real e apenas prejudica artistas e animadores cujo trabalho é manchado por oportunismo político.

    A reação também reflecte um debate mais amplo no Japão sobre regulação de conteúdo e liberdade criativa. Nos últimos anos, tem havido pressão crescente de várias frentes, desde processadores de pagamento que impõem as suas próprias políticas de conteúdo a plataformas digitais, até políticos que procuram regular representações ficcionais. Kurishita tem sido particularmente vocal sobre o que chama de “censura financeira”, onde empresas de cartões de crédito como Visa e Mastercard efetivamente agem como guardiões ao ameaçar cortar o processamento de pagamentos para lojas que vendem certos tipos de conteúdo, mesmo quando esse conteúdo é completamente legal.

    O cartaz publicitário original de Strawberry Marshmallow continua a ser exatamente o que sempre foi, um anúncio colorido e inocente de uma série de comédia sobre a vida quotidiana de crianças. O que mudou foi a disposição de um político em usar essa imagem, arrancada do seu contexto temporal e cultural, como munição numa guerra cultural que parece valorizar mais pontos políticos do que factos ou justiça para vítimas reais de crimes reais.

    Helder Archer
    Helder Archer
    Fundou o OtakuPT em 2007 e desde então já escreveu mais de 60 mil artigos sobre anime, mangá e videojogos.

    Artigos Relacionados

    Subscreve
    Notify of
    guest

    0 Comentários
    Mais Antigo
    Mais Recente
    Inline Feedbacks
    View all comments
    - Publicidade -

    Notícias

    Populares