O Termo Cyberpunk partiu dos eventos do final da guerra do Vietname em 1975, os movimentos hippie viviam as suas últimas horas, e as pétalas do flower power, deram lugar a uma crise económica que abriu a caminho a um liberalismo desenfreado que se iniciou nos anos 80, e que levou às grandes sociedades investirem massivamente em máquinas indústrias, computadores e tecnologia. O fosso social que cresceu por intermédio destes avançados tecnológicos, inspirou a um novo movimento de protesto encoberto por um novo género de ficção científica, o Cyberpunk. Neste geralmente projeta-se um futuro pessimista, onde se antecipa um futuro sombrio e os avanços tecnológicos ditam o quotidiano e as leis. É precisamente sobre estas temáticas que o novo jogo editado pela Bandai Namco Entertainment e criado pela CD Projekt RED se debruça. Tirando moldes de um jogo de tabuleiro de 2013, estamos perante um dos videojogos mais antecipados de sempre, pois além de 8 anos de desenvolvimento também nos encontramos cara a cara com um dos projetos mais caros e exigentes de sempre nesta indústria.

A forma mais leviana de descrever, Cyberpunk 2077 é liberdade. Todas as ações, fluxo de jogo, e elementos giram em redor desta temática. O jogador logo nos instantes iniciais bebe desta fonte, através da criação da sua personagem. A nossa jornada em Night City, inicia-se com a criação desta, e muito além da maioria dos RPGs, no mercado, podemos não só escolher o sexo da nossa personagem, como também um sem fim de personalizações, que vão desde a aparência que desejamos da nossa personagem até ao tamanho dos seios no avatar feminino ou genitais no avatar masculino. Como temos o “complexo” de jogar com uma personagem diferente da que conhecemos oficialmente nos vídeos e campanhas de publicidade, decidimos enveredar pela personagem base masculina, a mesma que encontramos na capa do jogo, escolhendo o preset base já referido. Após a seleção desta, somos confrontados pela escolha da fação ou modos de vida que queremos que seja representada. Ao todo temos três por onde escolher, Nomad, que tem como principal característica, uma vida de constante mudança, perigo, e liberdade, Street Rat, alguém vive e morre nas ruas, ou Corporative, um ser que vive nas altas camadas da sociedade, mas é manipulado por esta. Como acreditamos que Street Rat, é a que melhor se adapta à natureza do título da CD Projekt RED, decidimos tornarmo-nos num roedor da sociedade. De salientar que de acordo com as nossas escolhas iniciais, missões, personagens, e ambientes diferirão uns dos outros, o que à por si só oferece a Cyberpunk 2077, um replay value, e tempo de vida tremendos.

Com base nas nossas escolhas, a história abriu com V, um mercenário que executa todo o tipo de trabalhos para qualquer elemento de poder em Night City, desde os escalões mais baixos, órgãos de justiça, ou até altos membros da sociedade. Este é convidado por um amigo seu, a roubar um automóvel de alta cilindrada numa garagem. Contudo, ao chegar ao local, é deparado com a polícia e outro ladrão, um tipo robusto de origem latina, chamado Jackie. Após este encontro conturbado, V e Jackie estranhamente tornam-se nos melhores amigos, depressa partem em missões e partilham um modo de vida, onde a adrenalina marca as honras da casa. Viajamos seis meses mais tarde e encontramos a dupla, numa nova missão, contudo, esta terá consequências que vão abalar até os alicerces mais profundos de Night City. Poderíamos adiantar muito mais sobre a história, mas decidimos deixar esse prazer para o jogador, apenas podemos indicar que tudo na mesma tem significado e lugar neste universo. Mesmo missões secundárias menos importantes, partilham elementos, e outras condicionantes da história principal. Foi refrescante e único muitas horas mais tarde, sermos relembrados de acontecimentos de decorreram em missões iniciais. Estes eventos criaram uma interessante empatia com o jogador e com o seu mundo, literalmente os jogadores ao viajarem a cada sessão de Cyberpunk 2077, vão sentir-se como fossem transportados para uma realidade alternativa semelhante à que assistimos no célebre filme de The Matrix, não, não fazemos esta referência apenas pelo ator Keanu Reeves fazer parte do elenco de personagens, isto porque o jogo oferece um nível de vida que quase, mas mesmo quase parece vivo e orgânico, um paradoxo que parece contraditório face à natureza industrial e tecnológica deste titulo.

A CD Projekt RED, neste paragrafo não poupou esforços. Até mesmo ao voltarmos às ruas de Night City  para continuar a nossa aventura, somos introduzidos por uma espécie de Manuel Luís Goucha de 2077, nos carregamentos iniciais, e que nos dá as boas-vindas enquanto narra com um humor negro irónico os acontecimentos mais impactantes da cidade, quer sejamos nós os responsáveis, ou não. Tudo nas ruas prima de detalhe, e dinâmica, revelando com clareza as camadas e os modos de vida em Night City. Vídeos de programas, anúncios adultos, e características presentes nos seus habitantes também são uma constante, patentes nos vários locais que visitamos, e que contribuem para oferecer a cada canto e recanto, uma visão e cultura muito próprias. Contudo, existem dois elementos que são uma constante em qualquer que seja o local a visitar, a cultura pop e o crime. Foram inúmeras as referências que encontramos na nossa atribulada viagem por Night City. Desde referências a obras clássicas cyberpunk, tais como Akira, Armitage III, Alita: Battle Angel, ou Blade Runner, a elementos da cultura pop da geração atual tais como, Sailor Moon, Portal, JoJo’s Bizarre Adventure (soltamos uma leve gargalhada quando encontramos um grupo de cidadãos a fazer JoJo poses na rua), até o próprio Hideo Kojima -com uma nova identidade- está presente no jogo, acompanhado o seu BB de Death Stranding. “Tenho de ir, está a acontecer um crime algures”, a celebre frase do agente Alex Murphy, renascido como RoboCop, assenta que nem uma luva no modo de vida de Night City. Em cada esquina da mesma, o crime não dorme e impera, quer sejam tiroteios nas ruas, roubos, ou passando por perigosos membros da sociedade a corromperem ainda mais esta. Com base nestes o jogador pode em qualquer momento do jogo, oferecer ajuda, a cidadãos, ou até forças policiais. Muitos destes surgem na forma de “Gigs” ou “Fixers“, resumindo são sub-missões ou atividades que enriquecem mais o ambiente, história e tempo de jogo.

Respeitante ao seu fluxo e consequentemente ecossistema, estamos perante um Witcher III, com o DNA de Grand Theft Auto. Esta para muitos pode ser uma mistura dissuasiva, porque falamos de um RPG e de um sandbox. No entanto, a forma como Cyberpunk 2077 molda e adapta estes dois géneros é sem sombras de dúvidas feita com muita mestria. A mais recente aposta da CD Projekt RED pegou na dimensão narrativa e liberdade da aventura de Geralt di Rivia, enquanto lhe atribuiu a escala, recursos e elementos dos títulos da Rockstar. O resultado é um jogo nu e cru, proferido nos mais sinceros tons destas palavras. Cyberpunk 2077 não esconde nem relega a corrupção, poder e sexo no seu mundo. Deixamos o aviso, pois este jogo pode ferir a sensibilidade de mentes menos preparadas. As inúmeras situações e entretenimento na cidade não possuem pinga de pudor no que mostram ou referenciam. Simples inuendos até ao próprio ato sexual, passando por muita violência gráfica e linguagem obscena, são alguns dos condimentos que podemos esperar na nossa jornada por Night City. Por alto, estes elementos descritos representam também uma sociedade mecânica, que se rege por um entretenimento, intenso, porém vazio, desprovido de éticas, etnias e valores humanos. Cyberpunk 2077 na sua essência também pode atuar como uma metáfora e crítica social, pois se o ser humano, não pensa para ponderar o rumo que um capitalismo desenfreado e tecnológico pode trazer a humanidade poderemos perder a mesma no processo, pois de certa forma aproximámo-nos de uma realidade Cyberpunk 2.0, onde as anteriormente referidas máquinas, deram lugar aos avanços tecnológicos incessantes ano após ano, privacidade social, inteligência artificial e internet.

A jogabilidade de Cyberpunk 2077 também referencia os costumes e elementos deste género. O jogador pode tornar-se numa autêntica máquina de combate, através de implantes tecnológicos equipados no seu próprio corpo. Estes assumem diversas formas, e vão desde facas nos seus antebraços, até disparadores de misseis na palma das mãos. Para termos o acesso a estes implantes tecnológicos apenas temos de viajar até a um médico local e por uma pequena quantia de Eurodólares, e grau de respeito nas ruas, podemos proceder a esta modificação. Como não fosse bastante, poderemos ainda equipar habilidades que podem ser descarregadas em muitos painéis, e mais tarde instaladas no nosso sistema operativo. A dinâmica e escopo destes elementos contribuem para oferecer mais elementos e dimensão à nossa experiência de jogo. Estas habilidades assumem vários tipos de formas e características, desde fazer hacking a pessoas, ou câmaras de vigilância, até aumentarmos a vossa visão ao longe. É irónico como V e todos os habitantes da cidade, querem-se equiparar a humanos, quando cada vez mais caminham para uma realidade mais industrializada e vazia.

Cyberpunk 2077 é na sua essência um jogo que mescla elementos de RPG com shooters na primeira pessoa. Por vezes é um pouco contraditória num e noutro, isto porque em algumas instâncias não tem uma personalidade bem definida de qual via quer tomar. Por um lado, assemelha-se a um FPS, devido à sua jogabilidade base, por outro retira estatísticas de RPG nestas suas mecânicas. Confessamos que se tornou aborrecido evaporarem as balas em muitos tiroteios e percorrermos as ruas à procura de novo armamento, ou picos de dificuldade inconsistentes entre armamento e itens de jogo. Depressa uma simples pistola pode ser inútil, como a uma arma de destruição maciça. Isto muito devido aos seus próprios atributos e skill trees que podemos desbloquear. Cada arma tem um certo grau de poder e habilidade, e precisamos de atingir um nível para as desbloquear ou vestir a nossa personagem com um sem fim de equipamentos cosméticos, mas que oferecem atributos de personagem, alguns com combinações bem hilariantes. Se, por exemplo, atingirmos o nível 7, podemos desbloquear uma habilidade que atribui mais danos críticos a disparos na cabeça, consequentemente o nosso dano dispara em flecha quando atingimos este ponto vital nos nossos adversários. Este registo confessamos tornou-se um pouco contraproducente no ritmo e fluxo de jogo. Os jogadores tais como em qualquer RPG, têm diversas estatísticas para melhorar as suas habilidades, estas assumem os campos da força, destreza, hacking, ou até o quanto cool a nossa personagem pode ser. Nestas habilidades o hacking é definitivamente uma das mais importantes, pois abre caminho a mais missões secundárias, ou formas de encarar cada missão.

Os jogadores podem literalmente entrar a matar ou então sorrateiramente, à boa e velha maneira furtiva. Os jogadores se elevarem os seus níveis e práticas de hacking frequentemente poderão aceder a novas rotas por intermédio de portas anteriormente barradas, e matar pela calada sem deixar rasto os muitos prevaricadores da cidade. É importante salientar que o combate mesmo se tratando de um shooter na primeira pessoa, possui elementos que o separam de muitos, tais como o uso também de armas brancas como katanas, facas, ou até o seu próprio ambiente, por exemplo, personagens pelos cenários podem tropeçar em corpos, e tal como o jogador podem esgueirar-se ligeiramente atirando de um beco onde estão abrigadas. Para finalizar certas armas possuem efeito de penetração ou ricochete, que podem ser usados como elementos estratégicos nos tiroteios. Todos estes elementos e características certamente tornaram a jogabilidade mais dinâmica, divertida e muito menos aborrecida. Independentemente qual seja a nossa forma de jogar, a build, da nossa personagem irá equiparar-se ao nosso estilo de jogo.

Sem surpresa Cyberpunk 2077 é um portento visual tremendo, que mais parece saído da nova geração de videojogos. Este é um dos raros casos, onde o PC foi a plataforma idealizada na conceção do mesmo. As animações das suas personagens e ambientes são um verdadeiro deleite digital para os nossos olhos. Iniciamos este parágrafo com muito possivelmente as melhores animações que vimos num videojogo. Os modelos de personagens estão incrivelmente detalhados, as suas animações apresentam uma dinâmica e fluidez que igualam e por vezes superam até os impressionantes registos que assistimos em Red Dead Redemption 2. Com base neste efeito, o uso da primeira pessoa ganha outro sabor, porque embora não possamos ver com detalhe a nossa personagem, certos eventos e situações exploram esta dinâmica até ao tutano, através de pequenos registos e maneirismos que a nossa personagem e outras empregam nas suas conversas ou ambientes que visitamos. Estes elementos ganham nova vida através do fantástico jogo de luzes e sombras que foi usado na produção desta obra.

A CD Projekt RED simulou até a luz nos diversos fusos horários. De manhã cedo a luz incide menos, e é mais ténue, no pico da tarde, é luz é forte e incide espelhada nos prédios, ou outros elementos inorgânicos, e à noite, os neons saturados de cores vibrantes, e luzes artificiais iluminam os vários locais de Night City. Curiosamente o jogo também simula nos seus menus e huds um aspeto curvo que emula quase na perfeição um monitor com estas caracteristicas, mesmo que este seja plano, garantindo assim uma maior imersão até nestes breves momentos. O jogo de luzes e sombras brilha no seu esplendor se tivermos equipado um dispositivo com HDR e Ray Tracing. Infelizmente não nos foi possível testar a última porque as placas da gama AMD Radeon RX 6800 XT aguardam esta característica em Cyberpunk 2077, por agora este elemento é exclusivo nas placas gráficas Nvidia RTX. Contudo, não deixamos de ficar admirados com o desempenho deste jogo no nosso equipamento. Para o mesmo, tivemos ao nosso dispor uma build totalmente Team Red, ou seja, equipada com os novos processadores AMD Ryzen 5950X, e placas gráficas AMD Radeon RX 6800 XT. O jogo foi testado a 4K com todos os elementos gráficos no máximo e mesmo assim deambulou entre os 35 a 45 fps, ou seja, totalmente jogável e fluido quanto baste. Para um jogo concebido especialmente para equipamentos da marca verde não deixou de ser surpreendente. Contudo, falamos de um jogo com uma magnitude sem precedentes. Foi comum encontrar armas ou outros objetos em pleno ar, ou corpos uns dentro dos outros. Aparte destes pequenos inconiventes não foram registadas texturas em carregamento, corpos a esvoaçar pelos ares ou outros bugs reportados por alguns jogadores.

O som é uma das maiores características de qualquer obra cyberpunk, e, como não podia deixar de ser, também marcou um papel e destaque neste mundo tecnológico. As suas melodias vão ao encontro do esperado e que podemos esperar de uma realidade industrializada e artificial. Batidas fortes e poderosas envoltas em Techno, Synthwave, Electro, Retrowave, Dark Electro, ou outros contagiantes géneros musicais industrializados, são uma constante em todos os momentos do jogo quer sejam ténues como de maior destaque.

Cyberpunk 2077 é mais que um videojogo, é um testemunho vivo de uma lição de história, que se não tivermos consciência dos nossos atos pode vir a repetir-se. Embora não seja revolucionário, o título da CD Projekt RED tornou-se numa nova régua de medição dentro e fora desta indústria, quer seja a nível tecnológico como de narrativa. Não hesitem corram já para a vossa máquina mais próxima e vivenciem o futuro hoje no conforto e segurança das vossas casas, pois é mesmo como o célebre e carismato ator, Keanu Reeves, proferiu em palco, “é mesmo de tirar o fôlego“.

Bruno Reis
Vindo de vários mundos e projetos, juntou-se à redação do Otakupt em 2020, pronto para informar todos os leitores com a sua experiência nas várias áreas da cultura alternativa. Assistiu de perto ao nascimento dos videojogos em Portugal até à sua atualidade, devora tudo o que seja japonês (menos a gastronomia), mas é também adepto de grandes histórias e personagens sejam essas produzidas em qualquer parte do globo terrestre.
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Elivelton Silva
Elivelton Silva
16 , Dezembro , 2020 2:57

Fiquei sabendo que no Stadia o jogo tá rodando melhor do que no PC… Stadia MASTER RACE!!