
Mamoru Oshii, o diretor por trás de obras icónicas como Ghost in the Shell e Angel’s Egg, tem um vício confessado: Fallout 4. Numa entrevista recente à The Film Stage, o cineasta japonês revelou que já passa centenas de horas a explorar o universo pós-apocalíptico da Bethesda há oito anos. “Tenho jogado Fallout 4 durante oito anos. É o meu jogo ideal, quase como se tivesse sido feito especificamente para mim”, afirmou o diretor, que também expressou profundo respeito pelo trabalho de Hideo Kojima.
A relação de Oshii com videojogos não é novidade. O seu fascínio pelos mundos virtuais é visível na própria estética dos seus filmes, que frequentemente evocam lógicas próximas dos jogos. Mas o que torna esta história particularmente curiosa é a forma como ele decidiu jogar Fallout 4, documentada em artigos que ele próprio escreveu em 2017 para um site japonês.
Depois de abandonar Dragon Quest Builder, onde passou meses apenas a minerar recursos sem sequer passar do primeiro capítulo, Oshii descobriu Fallout 4 através da sua reputação como um “kamige” (jogo de nível divino, na gíria japonesa). Criou a sua personagem ideal, careca, olhos rasgados, barbudo e com nariz proeminente, editada para parecer o mais asiática possível, e estabeleceu um conjunto de regras autoimpostas que transformaram a sua experiência numa espécie de anarquia controlada.
As suas diretrizes são simples, mas radicais: nunca se aliar a qualquer facção, ter apenas o cão Dogmeat como companheiro, não usar glitches ou duplicação infinita de itens, evitar qualquer tipo de buffs temporários, e ignorar completamente a história principal. Se encontrasse o assassino da sua esposa, transformá-lo-ia num “cadáver crivado de balas”. Quanto ao filho desaparecido? “Ele provavelmente está a fazer o melhor que pode para sobreviver algures por aí. Mas se aparecer como vilão, mato-o no instante”.
A sua visão era tornar-se num orgulhoso catador de lixo que “massacra os maus e mata hienas” com a sua arma de confiança, antecipando que jogaria durante cerca de um ano. Isso escalou para centenas de horas ao longo de oito anos.

Terrorista por princípio
A primeira regra de Oshii tem uma razão particularmente interessante. Como ele próprio explicou, os jogadores de Fallout 4 são eventualmente guiados até ao final do jogo através do contacto com uma das organizações disponíveis. No entanto, o seu princípio fundamental é viver sem formar laços amigáveis com qualquer organização. “Seja a Brotherhood of Steel, os Minutemen ou a Railroad, prefiro muito mais ser morto por Deathclaws, repetidamente espancado ou baleado por Super Mutants, ou assaltar esconderijos de raiders para saque. Viver o dia a dia assim é mais divertido e permite-me manter a minha integridade ideológica”.
Este sentido de integridade levou Oshii a tornar-se especialmente hostil à Brotherhood of Steel, que compara aos nazis. “Sempre que vejo as suas unidades de reconhecimento nas ruínas, persigo-os por trás e elimino-os. Mato-os todos para não deixar provas. Decidi despojá-los e deixá-los ali deitados apenas em roupa interior. São invasores, por isso a misericórdia é desnecessária”. Acumulou uma enorme coleção de Power Armor da Brotherhood of Steel, que usou para decorar o seu quintal e até como material para construir um fosso. “Olhar para a fila de PAs saqueadas dá-me uma incrível sensação de realização”.
O colecionador obsessivo
A certa altura, a quantidade de saque e lixo que Oshii acumulou na sua base começou a fazer o jogo travar e gaguejar na sua PlayStation 4. Descrevendo o seu amor pelo lixo, citou William Saroyan: “Um homem é lixo em si mesmo e toda a sua vida ele enche a terra com isso”. Isto andava de mãos dadas com o seu hábito de despojar todos os inimigos humanos até ficarem apenas em roupa interior.
“Ultimamente, tenho estado a despojar cada peça de equipamento dos raiders e gunners que abato e a atirar tudo para a oficina do assentamento mais próximo. É vantajoso para todos, tenho o prazer de despojar os canalhas e ainda contribuo para o bem-estar da comunidade local. (…) Uma vez despidos, são todos iguais, e não deve haver diferença entre eles. Como alguém disse uma vez, ‘eles já não precisam disso’, por isso devíamos aproveitá-lo como recurso. É o mesmo que desmantelar lixo”.
Mamoru Oshii conseguiu ultrapassar o nível 100 em Fallout 4 sem recorrer às missões principais, apenas missões secundárias, raides e o que ele chama de pontos BBQ. “Só posso maravilhar-me com a minha própria paixão por ultrapassar o nível 100, mas bem, também me podem chamar idiota”.
A dedicação de Oshii ao jogo é tão intensa que, em 2017, chegou a atrasar a publicação da sua newsletter porque estava demasiado absorvido em Fallout 4. Quando questionado pelo seu editor, admitiu: “É tudo minha responsabilidade. Estou preso em Fallout 4, por isso acabei por me esquecer de enviar o manuscrito e fui para casa. Perdoem-me”.
Com Fallout 4 a completar uma década desde o seu lançamento, a obsessão de Oshii é um testemunho inusitado da longevidade do jogo e da liberdade que oferece aos jogadores para criarem as suas próprias narrativas, por mais caóticas que sejam.








