O lançamento de Hi-Fi Rush apanhou todos de surpresa e tornou-se um sucesso instantâneo, conquistando jogadores de todo o Mundo quer pelo seu gameplay como pelo seu aspecto visual distinto.

Aqui no OtakuPT tivemos a oportunidade de estar à conversa com o brasileiro Douglas De Azevedo Rogerio, que na Titmouse em Vancouver foi o diretor da animação das sequências 2D de Hi-Fi Rush.

Olá Douglas, em primeiro lugar gostaria de lhe dar os parabéns por Hi-Fi Rush, o jogo é um sucesso. Para os nossos leitores que não o conhecem pedia para se apresentar e falar um pouco do seu percurso até chegar à Titmouse.

Muito obrigado! Eu acompanho o trabalho do OtakuPT há anos e é muito satisfatório estar a fazer esta entrevista aqui com vocês.

Eu sou natural de Ribeirão Preto, cidade no interior de São Paulo. Sempre fui apaixonado por animes e animações em geral, mas como não é muito comum ter escolas de animação em cidades do interior, acabei por aprender de maneira autodidata. Depois de me aperfeiçoar fazendo trabalhos pessoais acabei por passar num teste de animação para uma série do Cartoon Network Brasileiro em 2014.

Então há nove anos atrás mudei-me para a cidade do Rio de Janeiro, assim começando a minha carreira trabalhando como animador na primeira temporada de uma série brasileira chamada Irmão do Jorel. Em 2016 mudei-me para o Canadá para trabalhar como animador no estúdio Titmouse (Vox Máquina, Big Mouth, Animaniacs) localizado na cidade de Vancouver, BC. Tenho também participação num estúdio boutique chamado Chaos Emporium (Helluva Boss episodio 6, Robbed, Cartoons and Vodka).

Na Chaos eu trabalho nas minhas horas vagas como diretor de animação e sócio criativo. Com o passar do tempo fui participando em vários projetos diferentes na Titmouse e assim subindo de cargo de tempos em tempos.

Já trabalhei como animador na série Star Wars Galaxy of Adventures, na abertura do jogo Speed Brawl, na série Niko and the Sword of Light. Já como supervisor trabalhei de supervisor de animação na série Archibald the next big Thing, supervisor de efeitos especiais 2D no filme da Netflix, Arlo, o Menino Jacaré, também fui diretor de animação numa das curtas animadas dos Looney Tunes com Piu Piu e Frajola, “Red, White, and Bruised“, e no ano passado recebi esta oportunidade de ser diretor de projeto no jogo Hi-Fi Rush.

Como foi trabalhar como diretor da animação 2D de Hi-Fi Rush?

Hi-Fi Rush foi o meu primeiro projeto como diretor, de início foi bem amedrontador pois eu nunca tinha sido responsável por um projeto do início ao fim. Antes dele, eu tinha trabalhado apenas como diretor de animação e normalmente lidamos apenas com a parte da animação em projetos, pois todas as outras etapas já estão prontas (design, storyboard, fundo de cenários). De início foi um pouco difícil, mas depois de algum tempo eu fui adaptando-me pois o projeto tem as duas coisas que eu mais gosto de combinar, animação fluida com atuação cheia de arcos e nuances (estilo filmes clássicos 2D da Disney, Dreamworks), misturada com um estilo de animação Japonesa (Anime). Como mencionei anteriormente, sempre fui muito fã de animes, então tentei colocar todos os meus conhecimentos da área no projeto. Como era um projeto pequeno comparado a séries ou clipes musicais de alto orçamento, eu acabei por supervisionar todas as etapas bem de perto. Fui supervisor de design de personagens, storyboard, diretor de animação e também de composição.

Tive a ajuda de um amigo ultra talentoso para cuidar da supervisão de backgrounds “Bruno Gondim Luna“, então nessa área acabei por cuidar apenas da direção de arte. No geral foi o projeto mais divertido e desafiador que eu já participei até hoje. A mistura de animação clássica com estilo anime não é algo muito fácil de se realizar, pois muitos animadores estão especializados em apenas um desses dois estilos. Como diretor de animação eu tive um envolvimento bem grande na maioria das cenas, fornecendo notas detalhadas de design de personagens tentando mantê-los no modelo do personagem o máximo possível. Também enviei ajustes de timing e flow para tudo ficar consistente do início ao fim.

Também trabalhei bastante em notas de precisão de detalhes, pois os personagens tem partes mecânicas e essas são áreas bem técnicas e complicadas de desenhar. Costumamos dizer que não tem como “trapacear” pois se algo sólido entorta vai deixar de estar correto na visão de quem está a assistir. Eu ainda não consigo entender como os animadores japoneses conseguem desenhar robôs super complexos à mão livre (risos).

Notamos que tudo se move na batida das músicas do jogo, como foi trabalhar com esse estilo tão sincronizado de animação?

Todas as cenas do jogo (incluindo as sequências em 2D) foram feitas no ritmo das músicas. Recebemos a música da introdução e do encerramento do jogo. Na introdução animamos seguindo a batida da música “Lonely Boy da banda Black Keys El Camino“, e no encerramento seguimos a batida da música “Honestly pelo cantor Zwan” (esta tem uma pegada bem anime do início dos anos 2000) já para as cutscenes recebemos metrónomos marcando como seria a batida das músicas (ainda a serem desenvolvidas).

Muita coisa resolvemos no storyboard, eu desenvolvi o trabalhei no storyboard do encerramento do jogo e dois outros artistas de storyboard fizeram a introdução e cutscenes, então eu ia supervisionando as cutscenes ao mesmo tempo em que eu trabalhava no storyboard dos créditos finais, mas com tudo já a ser pensando na batida da música. Depois dos storyboards aprovados instruí os animadores a animarem de acordo com a batida das músicas e ao compasso do metrónomo para as cutscenes.

No youtube encontramos apenas as versões de introdução e encerramento do jogo nas versões de streaming devido aos direitos autorais, mas no jogo dá para sentir que a abertura e o encerramento estão numa sincronia um pouco mais refinada e harmónica pois foi tudo baseado nas músicas oficiais que estão dentro do jogo.

Quantas pessoas trabalharam na animação 2D? Quanto tempo demoraram a completar o projeto?

No total foram à volta de 118 pessoas (contando com design, storyboard, animação, fundo de cenário, composição e coordenadores de produção). Uma boa parte da equipa foi de artistas freelancers, muitos de vários países diferentes com fusos horários diferentes. Muitos desses artistas trabalharam apenas a tempo parcial ou nas horas vagas, então o número acabou por ser maior do que o normal para um projeto deste porte, e isso acabou por me dar um trabalho bem maior, pois eu estava a cargo de todos os departamentos (menos fundo de cenários), incluindo supervisão de cleanup. Contratamos 4 estúdios diferentes para a etapa de “animação clean” (essa foi uma etapa bem complexa, pois o cleanup do projeto é algo muito específico e precisava de uma precisão bem grande, então tive muitas noites longas durante o processo de revisão de cenas).

No total foi um volume bem grande de trabalho para gerenciar, mas no final de tudo valeu a pena pois estou muito satisfeito com o resultado final do projeto. Para animação foram à volta de 28 animadores, eu contactei a maior parte da equipa pois na sua maioria foram artistas que eu conheço e confio no trabalho. Foram todos excelentes e ótimas pessoas de se trabalhar, tenho um orgulho enorme de todas as equipas pois o projeto não seria o mesmo sem o enorme talento de cada um desses artistas fantásticos!

Publicado pela Bethesda Softworks e desenvolvido pela japonesa Tango Gameworks, este foi um projeto internacional, como foi trabalhar com o diretor John Johannes.

Eles foram os melhores clientes que eu já trabalhei! Tivemos uma liberdade criativa enorme e eles foram super compreensivos com o quanto deveríamos mudar em relação a fazer a animação e design de personagens se encaixar dentro do orçamento da melhor maneira possível. Também foram ótimos com o feedback, muitas vezes trabalhamos com clientes que não entendem muito bem o quão trabalhoso e complicado é o processo de animação, então trabalhar com diretores que tem um envolvimento maior com arte ajuda e muito no desenvolvimento do projeto, compreendendo e adaptando-se às expectativas mais realistas de cronograma e orçamento.

Semanalmente tínhamos reuniões com a equipa da Tango e o diretor do jogo John Johannes, que é uma pessoa incrível de se trabalhar. Eu tive a chance de implementar várias ideias legais nas sequências 2D, um exemplo bom é num momento onde o Chai (personagem principal) está numa Zipline e aparece uma das vilãs do jogo dentro de uma TV, eu tive a ideia de ela sair da TV enquanto ameaça o Chai, assim quebrando a quarta parede, eles (os clientes) adoraram a ideia, então adicionamos isso na sequência oficial da cutscene.

Outra ideia muito legal que eles gostaram foi que numa sequência onde o Chai leva um soco no rosto depois de tentar resolver a situação na conversa (chamamos isso internamente de talk no jutsu), eu tive a ideia de fazer aquele momento de transição desacelerar para focar no rosto do personagem por um momento rápido com um card de impacto atrás do personagem, bem ao estilo Spider Verse. Isso também foi algo que eles gostaram e adicionamos à cutscene oficial

O estilo visual de Hi-Fi Rush é muito próprio, onde foram buscar inspiração para tal?

A inspiração principal foram as cutscenes e gameplay do jogo fornecidas pelo pessoal da Tango Gameworks, o material deles já estava fantástico, então tentamos adaptar o estilo para uma versão 2D, criamos muitos dos ambientes pois estes não existiam numa boa parte das nossas sequências em 2D.

Na parte de storyboard as minhas influências maiores foram as câmeras mais cinematográficas de animes. Eu adoro composições com ângulos mais extremos, acredito que elas dão uma visão mais de cinema com mundo mais aberto, assim elevando o scope visual como um todo. Eu diria que é o contrário do que faríamos numa série de comédia sitcom, onde os planos têm uma menor tridimensionalidade. Um anime que me influenciou muito na vibe da sequência de encerramento do jogo por exemplo foi o FLCL (Furi Kuri).

Na parte da animação a maior referência foram os filmes clássicos da Disney misturados com ação estilo anime, em algumas cenas você pode ver uma pegada mais fluida em estilo Disney/Dreamworks, e em outras cenas vemos movimentações com estilo bem dinâmico e impactante que vai mais na pegada do anime japonês.

Durante a animação eu tentei puxar bastante a arte para ficar o mais anime possível mas ainda sim do design dos personagens navega na mistura entre o cartunesco e o anime.

Exemplo de anotação no estilo de arte onde tento puxar a arte mais pro anime
Exemplo de anotação no estilo de arte onde tento puxar a arte mais para o anime

Já na parte backgrounds eu pedi para a equipa se inspirar nos materiais que foram fornecidos do jogo, e também num filme do Studio Trigger chamado “Promare“. O Promare tem uma paleta de cores parecida com a vibe do jogo, então achei que seria uma boa referência, no entanto, não temos gradientes no Hi-Fi Rush, pois o jogo tem essa pegada de comic book, resolvemos isso usando técnicas de hachura e halftones para simular os gradientes. O Bruno fez um trabalho incrível na supervisão de BGs. A direção de arte que eu fiz nessa área foi mais em relação à história, composição e continuidade entre as cenas, Já ele fazia os backgrounds ficarem com um visual muito bonito.

A animação 2D e 3D do jogo combinam na perfeição. Foi muito difícil obter esse look?

Tivemos que simplificar bastante o design dos personagens para nos podermos focar numa qualidade de animação maior, quanto menor a quantidade de linhas e detalhamento interno, mais nos podemos focar no movimento e melhor construção de desenhos dinâmicos. Eu fui trabalhando com os designers com foco em retirar e reajustar vários detalhes até chegar ao ponto onde chegamos nas sequências 2D. Durante as transições não é tão notável pois optei por várias escolhas artísticas que fazem os 2 designs parecerem idênticos. Mas na realidade o nível de detalhes diminuiu consideravelmente em relação à versão 3D dos personagens

Imagem acima e de versão já simplificada, esses botões são para o cleanup e cor do design
Imagem acima da versão já simplificada, esses botões são para o cleanup e design de corees

Também tivemos liberdade para fazer pequenas alterações no sentido de aproveitar melhor a silhueta dos personagens. A personagem Rekka é um desses exemplos onde eu pedi para o designer fazer os ombros dela maiores e diminuir um pouco a cintura, assim ela tem uma aparência mais tough (durona).

Outro ponto importante no design do jogo é que os personagens têm variação de linha, e isso é algo bem complicado de se conseguir em animações 2D pois exige um nível de cleanup bem mais minucioso. Um exemplo disso é se você olhar para a primeira temporada do anime Shingeki no Kyojin e comparar com as demais, vai notar uma diferença na espessura da linha. Na primeira temporada as linhas são bem mais grossas com grandes variações de espessura, já nas demais a linha foi ficando cada vez mais fina.

Shingeki no Kyojin Primeira temporada
Shingeki no Kyojin Primeira temporada
Shingeki no Kyojin Terceira temporada
Shingeki no Kyojin Terceira temporada

Então eu tive a ideia de construir um sistema automatizado de espessura de linhas usando um software de animação chamado Toon Boom Harmony. O sistema consiste em gerar um outline mais grosso para as partes externas dos personagens de maneira digital, porém no arquivo de cleanup o trabalho é feito utilizando apenas uma única espessura de linha. Isso otimiza imensamente o trabalho de cleanup pois afinar e engrossar as linhas e algo bem trabalhoso e que pode sair muito errado se não tivermos o cuidado e tempo necessário para tal

Foi um processo muito menos trabalhoso do que ter que fazer o cleanup todo customizado, porém eu ainda tive que escolher as espessuras das linhas cena por cena, pois em algumas cenas o personagem está pequeno na tela e em outras grande e isso faz com que a linha varie de tamanho.

Também inseri alguns nodes de cores para que o sombreamento ficasse com cores vivas e bem parecidas com as cores do jogo

Na parte de composição a maior referência foi o filme de animação 3D da Sony, Spider Verse, pois neles temos os tratamentos bem parecidos em relação a halftones (Meio-tom) e hachuras, e aberração cromática.

Na comunidade anime existe atualmente um debate entre animação 2D e animação 3D. O que acha da utilização da animação 3D em alguns dos animes mais recentes?

O 3D normalmente é utilizado muito mais do que o público imagina, nas sequências em 2D do Hi-Fi Rush por exemplo utilizamos uma guitarra 3D em cerca de 90% das cenas em que esse prop aparece. Se não mencionado, quase ninguém percebe que aquele é um objeto 3D devido à interação com o personagem 2D ter sido feita com bastante sincronia. O maior problema é a maneira como essa ferramenta é utilizada, e quais são os prazos que os artistas têm para aperfeiçoar a animação. Eu não vejo nenhum problema em adicionar 3D em produções de animação, o maior problema é como a técnica está a ser aplicada e o quanto de prazo o projeto tem. Kimitsu no Yaba e um ótimo exemplo de uso correto de animações 3D num universo 2D.

Exemplo de cena em que a guitarra e 3D
Exemplo de cena em que a guitarra é 3D

Para terminar. Quais são os seus animes favoritos?

Essa é uma pergunta difícil (risos). Gosto de muitos animes diferentes, mas logo de cabeça posso citar alguns mais marcantes. Os filmes são; Perfect Blue, Akira, A viagem de Chihiro, O castelo animado, Wolf Children, Sword of the Stranger e Legend of Hei (esse é um filme animado Chines que eu adoro).

De séries tem; Dragon Ball Z, FLCL (Furi Kuri), Fullmetal Alchemist Brotherhood, Hunter X Hunter, Shingeki no Kyojin, Mob Psycho, Cyberpunk Edgerunners, Ousama Ranking (Ranking of Kings) e mais recentemente Link Click (outra animação chinesa).

Onde podemos ver mais do seu trabalho?

Essas são as minhas redes sociais, lá estou sempre postando sobre o processo de animação dos projetos que participo:

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Francisco Filho
Francisco Filho
11 , Fevereiro , 2023 13:25

interessante, eu nem sabia que era um brasileiro o diretor de animação desse jogo, estou impressionado aqui, porque animação desse jogo é bem feito, ele fez um ótimo trabalho! Isso porque o mercado de animação aqui no Brasil é bem fraca e de poucas oportunidades, e pra destacar nesse mercado de animação precisa soar muito. Mas ele correu atrás dos seus sonhos e batalhou muito, com resultado disso conseguiu conquistar esse mercado chegando até ser o diretor de animação de uma grande empresa de jogos como Bethesda. Está de parabéns!