
Há histórias na indústria dos videojogos que parecem escritas para um thriller de Hollywood. Esta é uma delas. No dia 3 de dezembro, a Running With Scissors revelou Postal: Bullet Paradise, um spin-off tipo Vampire Survivors desenvolvido pela Goonswarm Games. Dois dias depois, o jogo estava cancelado, o estúdio encerrado, e havia ameaças de ação legal no ar. Tudo por causa de suspeitas de uso de inteligência artificial generativa.
O mais irónico? Apenas uma semana antes, a Running With Scissors tinha atacado publicamente Tim Sweeney, CEO da Epic Games, por este ter defendido que as lojas digitais deveriam abandonar as etiquetas “Feito com IA”. Na altura, a editora escreveu no twitter: “Os clientes merecem saber se um jogo foi criado com criatividade, alma e talento real em vez de uma máquina que cospe qualquer coisa a partir de um prompt”.
Como tudo desmoronou
Quando o trailer de Postal: Bullet Paradise foi publicado, os fãs da série não demoraram a apontar o dedo. Nos comentários do YouTube, no Reddit da franquia, e nas redes sociais, começaram a circular acusações de que os sprites em pixel art pareciam gerados por IA. As texturas tinham inconsistências estranhas, personagens apresentavam proporções irregulares, e havia aquele aspeto artificial que quem já viu material gerado por IA reconhece imediatamente.
A resposta inicial da Running With Scissors foi… desastrosa. Mike Jaret-Schachter, co-proprietário da editora, chamou “idiotas ignorantes” às pessoas que acreditavam que IA generativa tinha sido usada. Em mensagens no Discord da empresa, agora apagadas mas preservadas em screenshots, Jaret-Schachter escreveu: “Literalmente não. Desculpem pessoal, o vosso sonho molhado está errado. Completamente. Errado”.
Mas a coisa não ficou por aí. Zeron, gestor de comunidade da Running With Scissors, chegou a chamar “retardado” a um utilizador do Discord por acreditar que IA generativa tinha sido usada. Numa indústria onde as relações públicas são cruciais, esta abordagem foi um tiro no pé.
A Goonswarm Games tentou defender-se. Numa declaração à PCGamesN, o estúdio garantiu: “Não foi usada IA generativa para o trailer de revelação ou para o jogo. Todos os assets foram criados pelos nossos artistas humanos usando ferramentas padrão. Já partilhámos PSDs em camadas, ficheiros de trabalho em progresso e outros materiais para confirmar isto”.
A empresa publicou esses ficheiros de trabalho nas redes sociais, mas mesmo essa tentativa de transparência saiu pela culatra. Vários utilizadores apontaram que os ficheiros pareciam suspeitos, com alguns a acusar o estúdio de simplesmente ter traçado por cima da arte existente. A comunidade não estava a comprar a história.
A reviravolta completa
A 4 de dezembro, apenas 24 horas após o anúncio, a Running With Scissors fez um anúncio surpreendente. Depois de defender furiosamente a Goonswarm Games e insultar os críticos, a editora voltou atrás de forma espetacular.
“Depois de revelar Postal: Bullet Paradise, um título que a Running With Scissors estava a planear publicar mas não a desenvolver, fomos inundados com respostas negativas da nossa preocupada Comunidade Postal. O forte feedback deles é que elementos do jogo são muito provavelmente gerados por IA e, portanto, causaram danos extremos à nossa marca e à reputação da nossa empresa”.
A mensagem continuava: “A nossa confiança na equipa de desenvolvimento está quebrada, portanto matámos o projeto. Temos muitas coisas boas a chegar (algumas que vocês conhecem e outras não)”.
A editora pediu desculpas “a qualquer pessoa que se tenha sentido insultada no calor do momento”, embora tenha deixado claro que as desculpas não se aplicavam a quem tinha enviado ameaças de morte. Sim, houve ameaças de morte.
O encerramento do estúdio
A Goonswarm Games não resistiu. No dia 5 de dezembro, anunciou o encerramento completo do estúdio, mantendo a narrativa de que não tinha usado IA.
“O nosso projeto, e tudo o que construímos ao longo dos últimos seis anos, foi cancelado em apenas alguns dias. O nosso estúdio foi erroneamente acusado de usar arte gerada por IA nos nossos jogos, e cada tentativa de esclarecer o nosso trabalho apenas escalou a situação. Nas últimas horas, recebemos um grande número de ameaças, insultos e provocações, que nos empurraram para uma decisão muito difícil”.
A mensagem expressava pesar pelos artistas que tinham trabalhado no projeto: “Lamentamos verdadeiramente pelos artistas que colocaram a sua alma nisto e apoiaram o nosso estúdio, apenas para enfrentar acusações falsas de IA. É difícil despejar tanta energia num jogo e acabar apanhado no meio de uma guerra de IA por acidente”.
A confissão tardia
Mas a história não acabou aí. No dia seguinte, a Goonswarm publicou outra declaração, desta vez admitindo parcialmente o uso de IA.
“Queremos começar com um pedido de desculpas sincero a todos os afetados por esta situação – a comunidade, os nossos parceiros, e especialmente os artistas que nos apoiaram. Depois de ter esse tempo e conduzir uma revisão interna, concordamos com a vossa crítica. A arte promocional parece incluir ou estar influenciada por material gerado por IA”.
O estúdio explicou que tinha colaborado com artistas externos durante anos e nunca tinha visto sinais disto: “Os PSDs em camadas sempre pareceram legítimos dentro do nosso pipeline interno, e é por isso que a nossa reação inicial foi proteger a nossa equipa e defender a nossa inocência”.
Crucialmente, a Goonswarm fez questão de esclarecer: “Também queremos sublinhar que esta questão se relaciona apenas com a arte promocional e não diz respeito aos artistas reais que trabalharam em visuais de jogabilidade, assets e outro conteúdo. Muitos deles não têm nada a ver com esta situação, mas têm estado a receber ameaças, assédio e ódio”.
Apesar do encerramento anunciado, o estúdio prometeu: “Vamos substituir toda a arte promocional disputada em todos os nossos projetos com peças criadas inteiramente por artistas humanos. Vai levar tempo, mas vamos fazê-lo”.
Este caso levanta várias questões perturbantes sobre a indústria. Primeiro, a facilidade com que artistas externos podem usar IA sem que os clientes o saibam, mesmo quando trabalham para estúdios que genuinamente se opõem à tecnologia. Segundo, a velocidade com que uma polémica pode destruir completamente um projeto, e até um estúdio inteiro nas redes sociais.
A Goonswarm Games trabalhou seis anos no projeto. Foi tudo destruído em 48 horas. Mesmo que a arte de jogabilidade fosse genuinamente feita por humanos, como o estúdio insiste, a arte promocional gerada por IA foi suficiente para acabar com tudo.
Quanto à Running With Scissors, o próximo jogo oficial da série deverá ser Postal 2 Redux, programado para 2026. Desenvolvido pela Flat2VR Studios e Team Beef em colaboração com a própria editora, será interessante ver se a empresa aprendeu alguma coisa com este desastre, especialmente sobre como não tratar a própria comunidade quando surgem preocupações legítimas.









