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    Videojogos na infância de 90, mais do que diversão, uma escola de vida

    Tive a sorte de crescer e acompanhar de perto a evolução dos videojogos a nível mundial. Desde o momento em que recebi a minha primeira “famiclone”, juntamente com o meu primeiro jogo de Megaman, que explica a origem do meu favoritismo e conhecimento sobre a série como várias vezes me abordaram, com os seus eternos visuais em 8 bits em que tinha apenas 7 anos.

    Meus amigos apresento-vos a primeira consola que tive, uma famiclone que descaramente até um autocolante do Super Mario Bros. 2 japonês! Já agora ainda funciona!!

    Ao longo desse percurso, passei de uma era rudimentar para outra em que temos até a ousadia de afirmar que gráficos fotorealistas são maus. Acompanhei de perto a primeira grande “guerra” dos videojogos, com os noticiários a divulgarem os supostos horrores de Mortal Kombat, o salto gigantesco dos sprites em 2D para os polígonos em 3D, sequências FMV em vídeos, troca de media mais vezes que trocamos de camisa, e uma troca de galhardetes ácidos entre duas das principais empresas de jogos de luta que é nos dias de hoje são fiéis aliadas. Olhando para trás são inúmeras as experiências que vivi e que, sem me aperceber, contribuíram para o desenvolvimento das minhas capacidades e até de aptidões importantes para a vida.

    Hey olha Cloud! O que muitas vezes dizíamos de gráficos perfeitos a meados dos anos 90

    Vários psicólogos chegaram à conclusão que as crianças que cresceram nos anos 90 a jogar videojogos desenvolveram estruturas cognitivas diferentes de todas as outras gerações, não devido à influência do sistema educativo ou das práticas parentais, mas sobretudo pelo tipo de jogos a que estavam expostas. Os videojogos dessa época eram exigentes e pouco indulgentes. Errar fazia parte do processo e a progressão dependia da repetição, da aprendizagem pelo fracasso e da perseverança. Jogos emblemáticos, tais como Super Mario Bros. , Sonic The Hedgehog, Castlevania, ou ou já citado Megaman impunham regras rígidas, com um número limitado de vidas, ausência de pistas, inexistência de gravação automática e uma penalização clara perante o erro. Esta dinâmica levava o cérebro a desenvolver várias competências, tais como autocontrolo, planeamento, capacidade de resolução de problemas e resistência à frustração.

    Imaginem, a tragédia, o drama e o horror de uma criança com 7 anos a tentar conquistar um ser intimidante que se reconstrói de um lado para o outro a uma velocidade frenética e tudo acompanhado por um tema no mínimo “infernal”

    Do ponto de vista neurocientífico, vários estudos indicam que este tipo de desafio cognitivo estimulava áreas cerebrais associadas à memória, à orientação espacial e à tomada de decisões, em particular o hipocampo. A necessidade de memorizar percursos, padrões de inimigos e sequências de movimentos reforçava a aprendizagem activa e a atenção sustentada. Em contraste, muitos jogos actuais são desenhados para guiar o jogador permanentemente e são bombardeados com instruções constantes, reinícios automáticos e sistemas de ajuda que reduzem a necessidade de esforço mental autónomo. O resultado é uma experiência mais passiva em que o jogo “pensa” pelo utilizador. Muitos de vocês vão logo dizer que essas experiências existem hoje sob a forma dos jogos “Soulsborne” e afins. Mas, meus amigos, convenhamos: recomendar um Dark Souls a uma criança é, no mínimo “estranho” isto se tivermos conta as suas temáticas e o ar elitista que costuma acompanhar este género. A grande questão é outra, será que os mesmos “guerreiros do sofrimento” conseguem sequer acabar o primeiro nível de Contra antes de invadirem a secção de comentários com paus, tochas e pedras? Pensem bem nisso.

    Um tiro ditava a morte do artista… e o problema é que vinham de todas as direções

    Outra diferença significativa reside na relação com o tempo de jogo. Nos anos 90, os videojogos tinham um início, um meio e um fim bem definidos. Ao concluir o jogo, a experiência terminava naturalmente. Nos dias de hoje, as experiências infantis são dominadas com as séries Fortnite, Roblox e Minecraft que foram concebidas como experiências contínuas, sem conclusão final e recorrem a actualizações permanentes e a eventos recorrentes para manter o envolvimento do jogador. Muitos pais relatam que as crianças têm dificuldade em definir limites, uma vez que não existe um momento claro do encerramento da actividade, fenómeno raramente observado nas consolas clássicas da época, em que um jogo poderia ser concluído em pouco mais de uma hora. Lembro-me de projetar cerca de uma hora diária, a tentar concluir um dos meus jogos favoritos da SEGA Game Gear, Ristar, uma estrela cadente da SEGA que estava destinada à grandeza mas acabou ser engolida no buraco negro das 32 bits e numa corrida desmedida ao 3D.

    Onde andas tu Ristar…

    Também há que destacar a dimensão social dos jogos antigos. Jogar significava estar fisicamente presente com outras crianças onde se partilhava um comando, jogava-se em modo cooperativo fisicamente no mesmo espaço e aprendia-se a negociar, esperar pela vez e lidar com conflitos de forma directa. As tradicionais “lives” eram transmitidas diretamente de para as nossas quartos ou salas e muitas vezes para jogar em conjunto tínhamos de nos deslocar até à casa do nosso vizinho ou familiar.  Sem nos apercebermos estes momentos contribuíam para o desenvolvimento de competências sociais e emocionais. Actualmente, embora os jogos online permitam interacções com milhares de jogadores, estas relações são frequentemente superficiais e mediadas por auscultadores e ecrãs. Psicólogos e especialistas em comportamento alertam que o aumento do lazer exclusivamente digital está associado a sentimentos de isolamento, solidão, e até tendências suicidas, sobretudo em idades precoces e conforme o grau de adaptabilidade.

    Street Fighter II, a derradeira experiência multiplayer dos anos 90

    Além disso, os jogos dos anos 90 exigiam um foco contínuo, sem interrupções externas. Não existiam notificações, publicidade integrada ou estímulos constantes a desviar a atenção. Atualmente os jogos  recorrem a mecanismos inspirados em sistemas de recompensa intermitente, semelhantes aos utilizados em jogos de azar, tais como recompensas diárias, passes de batalha e estratégias baseadas no FOMO. Estas práticas exploram vulnerabilidades psicológicas e incentivam a repetição e a permanência prolongada no jogo.

    Alguma vez terminou?

    O jogador era quem ditava as suas próprias regras. Não existiam achievements, troféus da PSN nem vídeos no YouTube de adultos histéricos a saltitar de alegria pelo dinheiro que arrancam aos pais das crianças, enquanto fingem que estão a “partilhar a paixão pelos jogos”. Naquela altura, jogava-se a sério. Atualmente? Grande parte desse entusiasmo é partilhado pelo marketing, consumismo e ego inflado.

    Quanto ao consumismo, havia algo que hoje seria impensável. Por ano, muitas vezes só tínhamos um jogo. Sei que pode parecer escandaloso, tendo em conta o consumo fácil e instantâneo de hoje, mas meus amigos, naquele tempo, esse jogo chegava normalmente no nosso aniversário ou no Natal e, se tínhamos muita sorte, em ambas as ocasiões.

    Essa escassez ensinava-nos paciência… contentarmos com o tínhamos… e a grande arte da negociação. Para experimentar algo diferente, muitas vezes tínhamos de pedir emprestado aos familiares ou amigos. E sem qualquer pudor, admito que puxei mil cordelinhos, por exemplo tentei que um amigo convencesse outro a emprestar-me o Final Fantasy VII da PlayStation, que, claro, acabei por comprar depois, depois de mais negociações com a minha mãe e do “bónus” de ter passado de ano na escola. Mais tarde a Sony Interactive Entertainment demonstrou este movimento a novas gerações.

    Hoje, olhando para trás, recordo tudo com saudade… e com muitas gargalhadas pelo quão ridículas foram algumas dessas aventuras ou desventuras consoante o ponto de vista.

    Em suma, enquanto os jogos do passado promoviam a persistência, a autonomia e a conclusão de objectivos, muitos jogos da atualidade privilegiam a estimulação constante e a retenção do utilizador. Se antes o jogador controlava o tempo e encerrava a experiência ao terminar o jogo, hoje em dia é o próprio jogo a definir quando, e se, a experiência chega ao fim.

    Bruno Reis
    Bruno Reis
    Vindo de vários mundos e projetos, juntou-se à redação do Otakupt em 2020, pronto para informar todos os leitores com a sua experiência nas várias áreas da cultura alternativa. Assistiu de perto ao nascimento dos videojogos em Portugal até à sua atualidade, devora tudo o que seja japonês (menos a gastronomia), mas é também adepto de grandes histórias e personagens sejam essas produzidas em qualquer parte do globo terrestre.

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