Nem tudo o que funciona no papel deve saltar para o ecrã. Esta é uma verdade especialmente relevante quando falamos de mangá, um meio que permite aos criadores explorar territórios psicológicos e visuais que simplesmente não têm lugar no anime.
7Battle Royale
Quando Koushun Takami escreveu Battle Royale em 1999, criou algo que ia muito além de adolescentes a matarem-se numa ilha. A adaptação mangá de Masayuki Taguchi, lançada em 2000, aprofundou ainda mais as histórias individuais dos 42 estudantes forçados a participar neste jogo mortal. O que torna esta obra tão difícil de adaptar não é apenas a violência gráfica, é a total ausência de moralidade confortável. Não há heróis simpáticos, não há vilões óbvios. São apenas miúdos normais que se transformam em assassinos quando a pressão aperta. O mangá força-nos a confrontar uma verdade desagradável, a civilização é frágil e qualquer um de nós pode quebrar. Um anime teria de suavizar isto, dar-nos alguém por quem torcer, criar distância emocional. E isso destruiria completamente o propósito da obra.
6MPD Psycho
Entre 1997 e 2016, Eiji Ōtsuka e Shōu Tajima criaram uma das séries mais bizarras e perturbadoras do meio. MPD Psycho segue um detetive com múltiplas personalidades a investigar crimes que envolvem lavagem cerebral, tráfico de órgãos e um culto obcecado com códigos de barras tatuados nos olhos das vítimas. Sim, leste bem. A narrativa salta no tempo, muda de perspetiva sem avisar, reflete a mente fragmentada do protagonista na própria estrutura da história. Vendeu mais de quatro milhões de cópias no Japão precisamente porque consegue fazer coisas que nenhum outro meio permite. Transformar isto num anime seria como tentar encaixar um pesadelo numa narrativa linear, tecnicamente possível, mas perderia tudo o que o torna especial.
5Hideout
Masasumi Kakizaki não te dá monstros ou fantasmas em Hideout. Dá-te algo muito pior, um homem comum que perdeu tudo e decide matar a própria mulher durante umas férias. Quando o plano corre mal e ambos ficam presos numa caverna com um assassino, o mangá transforma-se numa descida claustrofóbica ao inferno psicológico. A genialidade está na intimidade. Não é sobre sustos ou gore, é sobre como o fracasso, o luto e a raiva reprimida podem destruir uma pessoa por dentro. A obra sufoca-te deliberadamente, página após página, sem te dar espaço para respirar. Um anime adicionaria música, ritmo de episódios, pausas para respirar. E isso seria fatal. Hideout não quer que te divirtas. Quer que sintas cada segundo daquele desespero.
4Homunculus
Hideo Yamamoto é um mestre em criar desconforto, e Homunculus (2003-2011) pode ser a sua obra mais invasiva. A premissa já é perturbadora, um sem-abrigo aceita deixar que lhe façam um buraco no crânio em troca de dinheiro. Depois da trepanação, começa a ver as pessoas como manifestações físicas dos seus traumas mais profundos, corpos deformados, monstruosidades que revelam o que cada um esconde. À medida que a história avança, a própria sanidade do protagonista desmorona-se e começamos a questionar o que é real. O estilo de Yamamoto é hiper-realista e detalhado, cada painel é uma violação da privacidade emocional. A obra não se limita a mostrar horrores, disseca a psique humana com a precisão de um cirurgião sádico. Animar isto seria impossível sem perder aquela quietude perturbadora que é essencial à experiência.
3Berserk
Já houve tentativas de animar Berserk, mas nenhuma conseguiu capturar o que Kentaro Miura criou no papel. O infame arco do Eclipse continua a ser um dos momentos mais brutais da história do mangá, Griffith a trair os seus companheiros, a sacrificá-los para se tornar deus, enquanto Guts é forçado a assistir a horrores que incluem violência sexual gráfica e massacre de pessoas que considerava família. Miura não usa esta violência gratuitamente. Cada painel é meticulosamente desenhado para transmitir desespero absoluto, traição existencial, o colapso de qualquer esperança. Os estudios de anime tentaram, mas acabam sempre por suavizar, acelerar, tornar mais “consumível”. E Berserk não foi criado para ser consumível. Foi criado para deixar cicatrizes.
2Oyasumi Punpun
Inio Asano fez algo extraordinário com Oyasumi Punpun (2007-2013), contou uma história devastadora sobre depressão, abuso e autodestruição através de um protagonista desenhado como um simples pássaro de traços infantis. Esta desconexão entre a representação visual inocente e o horror psicológico que Punpun vive é o que torna a obra tão poderosa. À medida que Punpun cresce, a sua vida desmorona-se, família disfuncional, amores tóxicos, pensamentos suicidas. Asano não poupa o leitor de nada. A honestidade brutal sobre saúde mental e o lado mais negro do crescimento faz de Punpun uma leitura dolorosa mas necessária. Animar isto seria um erro tremendo. Como traduzes aquela arte abstrata para movimento? Como manténs aquela voz surrealista quando precisas de adicionar vozes reais? Qualquer tentativa destruiria a magia perturbadora da obra original.
1Ichi the Killer
Se Homunculus é invasivo, Ichi the Killer (1998-2001) é um ataque frontal aos limites do bom gosto. Hideo Yamamoto criou deliberadamente uma das obras mais sádicas alguma vez publicadas, um yakuza sadomasoquista e um assassino psicótico cujas interações são uma espiral de violência sexual, desmembramento e depravação moral. Takashi Miike fez um filme em 2001 que se tornou cult, mas até ele teve de fazer cortes. O mangá original não tem filtros. A questão filosófica por trás de toda esta violência é perturbadora, pode o mal ser uma forma de expressão artística? Yamamoto não responde, apenas mostra. E o que mostra cruzaria todas as linhas possíveis em qualquer plataforma de anime. Esta obra existe para testar limites, para fazer perguntas desconfortáveis sobre representação de violência na arte. É uma conversa que o anime comercial simplesmente não pode ter.








