
Num caso que durou mais de três anos e meio, o Tribunal Distrital de Tóquio decidiu a 19 de novembro que a Cloudflare é legalmente responsável por facilitar a pirataria de mangá em larga escala. A empresa americana foi condenada a pagar 500 milhões de ienes (cerca de 3,2 milhões de dólares) a quatro das maiores editoras japonesas: Kadokawa, Kodansha, Shueisha e Shogakukan.
A decisão marca um precedente significativo na indústria tecnológica, sendo a primeira vez que um tribunal japonês responsabiliza um fornecedor de serviços CDN (Content Delivery Network) por danos relacionados com distribuição de conteúdo pirata. As editoras celebraram uma “vitória contra a Cloudflare” após anos de tentativas frustradas de resolver a situação através de negociações diretas.
Um conflito que começou em 2018
A disputa entre as editoras japonesas e a Cloudflare não é recente. Em 2018, as mesmas quatro editoras apresentaram uma primeira queixa no Tribunal Distrital de Tóquio, argumentando que a empresa estava numa posição privilegiada para travar a infração de direitos de autor. O principal problema identificado pelas editoras era o sistema de cache da Cloudflare, que replicava conteúdo dos sites piratas nos seus servidores, distribuindo-o depois aos utilizadores.
Em 2019 foi alcançado um acordo entre as partes, cujos detalhes só foram revelados em 2020. A Cloudflare comprometeu-se a “parar a replicação dos sites para os servidores da Cloudflare no Japão” caso o tribunal determinasse que os sites em questão eram ilegais. No entanto, este acordo não resultou nas mudanças esperadas pelas editoras.
Em janeiro de 2022, as editoras voltaram a preparar ação judicial contra a Cloudflare, desta vez com argumentos mais sólidos. Análises técnicas revelaram que os sites piratas continuavam a usar os serviços e o sistema de cache da empresa, apesar das notificações anteriores. A 1 de fevereiro de 2022, o processo foi formalmente apresentado.
Os números revelados durante o processo são impressionantes. As editoras notificaram a Cloudflare sobre dois sites massivos de pirataria que distribuíam mais de 4.000 obras de mangá sem autorização e que, no seu pico, atraíam conjuntamente mais de 300 milhões de visitas mensais.
“Solicitámos que a empresa tomasse medidas como parar a distribuição de conteúdo pirata dos servidores sob a sua gestão. No entanto, a Cloudflare continuou a fornecer serviços aos sites de pirataria de mangá mesmo depois de receber notificações dos queixosos”, afirmaram as editoras em comunicado.
Mais grave ainda, a Cloudflare manteve os serviços ativos mesmo após receber ordens judiciais de divulgação de informação por tribunais americanos. Entre abril de 2020 e dezembro de 2021, estima-se que foram visualizados ilegalmente entre 70 milhões e 2 mil milhões de capítulos por mês, causando perdas financeiras astronómicas às editoras.
Os fatores que determinaram a condenação
O tribunal considerou vários elementos na sua decisão. A sentença reconheceu que a falha da Cloudflare em tomar medidas atempadas e apropriadas, apesar de receber notificações de infração das editoras, e a sua continuação negligente na distribuição de conteúdo pirata constituíram cumplicidade na violação de direitos de autor.
“A sentença reconheceu que a falha da Cloudflare em tomar medidas atempadas e apropriadas apesar de receber notificações de infração dos queixosos, e a sua continuação negligente da distribuição de conteúdo pirata, constituíram cumplicidade na violação de direitos de autor, e que a Cloudflare tem responsabilidade pelos danos aos queixosos”, escreveram as editoras.
Um aspeto particularmente relevante destacado pelo tribunal foi a ausência de procedimentos de verificação de identidade por parte da Cloudflare. A sentença enfatizou que a empresa permitiu que sites massivos de pirataria de mangá operassem “em circunstâncias onde forte anonimato estava assegurado”, o que foi considerado base fundamental para reconhecer a responsabilidade da empresa.
Danos de 24 milhões que poderiam ter sido maiores
O processo envolveu apenas uma obra protegida por cada editora, mas mesmo assim o tribunal reconheceu danos totais de aproximadamente 3,6 mil milhões de ienes (cerca de 24 milhões de dólares). No entanto, como as editoras optaram por reclamar apenas uma porção dos danos sofridos, a sentença contra a Cloudflare ficou nos 500 milhões de ienes.
Esta estratégia processual das editoras sugere que o objetivo principal não era necessariamente obter a maior compensação financeira possível, mas estabelecer um precedente legal claro sobre as responsabilidades dos fornecedores de CDN em casos de pirataria.
A Cloudflare sempre manteve que as suas políticas estão em conformidade ou excedem os requisitos legais, incluindo aqueles estabelecidos nos Estados Unidos, onde a empresa não pode ser responsabilizada por infrações cometidas pelos seus clientes em circunstâncias apropriadas.
A empresa argumentou que tinha ido “além das suas obrigações” para assistir os detentores de direitos no Japão, incluindo a adoção de um processo de denúncia de abusos para conectar detentores de direitos com fornecedores de alojamento “realmente capazes de remover conteúdo infrator da internet”.
Durante o processo, a Cloudflare defendeu-se argumentando que estava apenas a transmitir dados passivamente, transferindo a responsabilidade para os verdadeiros remetentes, os proprietários dos sites de pirataria. A empresa destacou que o que faz (copiar obras protegidas por direitos de autor para melhorar a transmissão) geralmente não é considerado ilegal, exceto quando o ato prejudica injustamente os interesses do detentor dos direitos de autor.
Segundo meios de comunicação japoneses, a Cloudflare planeia recorrer do veredicto. Num comentário submetido ao USTR (Representante de Comércio dos Estados Unidos) no mês passado, a empresa já parecia antecipar uma decisão desfavorável, referindo-se a uma disputa de longa duração no Japão com potencial para afetar negativamente negócios futuros.
“Uma disputa particular reflete anos de esforço do governo do Japão e da sua indústria editorial para impor obrigações adicionais a intermediários como CDNs”, lê-se no documento. “Uma decisão totalmente adjudicada que considere CDNs responsáveis por danos monetários por material infrator estabeleceria um precedente global perigoso e necessitaria que fornecedores de CDN dos EUA limitem a provisão de serviços globais para evitar responsabilidade, restringindo severamente o crescimento do mercado e a expansão nos mercados da Ásia-Pacífico”.
O que significa para o futuro dos serviços CDN
As editoras acreditam que a sentença clarifica as condições sob as quais uma empresa como a Cloudflare incorre em responsabilidade por violação de direitos de autor. A falha em realizar verificação de identidade aparece no topo da lista das editoras, seguida pela falta de ação atempada e apropriada em resposta a notificações de infração enviadas pelos detentores de direitos.
“Acreditamos que esta é uma decisão importante dada a situação atual onde operadores de sites de pirataria frequentemente escondem as suas identidades e repetidamente conduzem distribuição em larga escala usando serviços CDN do estrangeiro. Esperamos que esta sentença seja um passo para assegurar o uso apropriado de serviços CDN. Continuaremos os nossos esforços para proteger os direitos das obras, criadores e partes relacionadas, enquanto visamos uma maior expansão de conteúdo legítimo”, concluíram as editoras.
A decisão tem implicações significativas não apenas para o Japão, mas potencialmente para outras jurisdições que enfrentam problemas similares com pirataria digital. Estabelece que os fornecedores de infraestrutura tecnológica não podem simplesmente alegar neutralidade quando existe evidência clara de uso massivo dos seus serviços para fins ilegais.
As editoras também sublinharam que reconhecem a utilidade dos serviços CDN para distribuição legítima de conteúdo, mas enfatizaram que quando tal tecnologia é mal utilizada por sites de pirataria, o conteúdo ilegal pode ser distribuído de forma eficiente e em grande escala, causando danos substanciais aos criadores e à indústria.
Entre as obras afetadas pela pirataria encontravam-se títulos extremamente populares como One Piece e Attack on Titan, dois dos mangás mais vendidos e influentes das últimas décadas, cuja pirataria representa perdas milionárias para as editoras e criadores.









