Onde se encontra a divisão entre protagonista e jogador?

Em muitos jogos, esta praticamente não existe. O jogador pode-se considerar o protagonista, e o protagonista como o seu avatar no mundo que explora.

O que acontece, portanto, quando a protagonista de um jogo tem objectivos opostos ao dos jogadores?

Forspoken é um Action RPG da Square Enix, em que os jogadores são convidados a acompanhar as aventuras de Frey, uma nova-iorquina de gema, pelo fantástico mundo de Athia. Um mundo que nos deslumbra pela sua beleza fria e solitária, onde Frey e o seu parceiro, Cuff são as únicas almas por quilómetros.

No entanto, por muito que o jogador queira, pelo menos ao início, explorar o mundo de Athia… Frey não o quer.

Frey é uma protagonista extremamente relutante em o ser, cujo único objectivo fundamental é voltar para casa. Após ser transportada para o mundo de Athia por um portal misterioso, ela reage a tudo e todos com hostilidade e uma boa dose de palavrões, o que ao início, até é divertido. Muitos de nós certamente reagiríamos da mesma maneira ao sermos enviados para outra dimensão, mesmo que isto nos oferecesse poderes mágicos.

Mas Frey nunca larga a sua personalidade abrasiva. Ao longo do jogo, ela proclama o seu desagrado ao ser chamada de heroína, e recusa-se a salvar seja quem for, imediatamente negando sempre que alguém sugere que ela o possa ser. Por outro lado, nós, enquanto jogadores, por norma queremos ser os heróis das histórias que estes nos contam. Nós queremos salvar o reino arruinado por uma maldição, nós queremos explorar o mundo à nossa volta, nós queremos descobrir os mistérios por detrás dos acontecimentos que levaram a que Athia seja um local onde tudo morre, onde tudo degenera. Afinal de contas, é por isso que estamos a jogar.

Nisto, cria-se um choque entre Frey e o jogador, o que quebra um pouco a imersão quando somos nós efetivamente a controlá-la por esta aventura na qual ela claramente não quer participar.

Embora não de boa vontade, Frey tem uma quantidade surpreendente de maneiras de interagir com o mundo à sua volta. O combate de ação é uma dança constante de atacar com os vários feitiços que ela tem disponível enquanto se desvia dos ataques, de atirar feitiços de suporte para nos ajudar, e de beber poções para recuperar vida quando os ataques dos inimigos lhe acertam.

O jogo tem também uma componente extensa de exploração… embora não particularmente diversa. O mundo de Athia acaba por parecer todo muito uniforme, com cofres de tesouro espalhados pelo mapa, assim como templos e monumentos que se possa explorar, com certas condições. A história não nos permite sair muito fora do caminho, e as próprias habilidades de movimento da Frey bloqueiam-nos a passagem por certas partes.


Falando no seu movimento, a Frey tem uma habilidade chamada de parkour mágico. Com este poder, Frey pode correr a alta velocidade, assim como saltar sobre obstáculos e trepar paredes. No entanto, esta habilidade acaba por ser um pouco caótica e difícil de controlar. A forma da Frey se mover é apropriada nas planícies amplas do mundo, mas torna-se também desconfortável nas ruas estreitas de Cipal, a cidade principal do jogo, no qual uma pessoa acaba a tentar mexer cuidadosamente a Frey até conseguir interagir com os restantes personagens.

Cipal, no entanto, tem também vários pontos de interesse. A cada momento da história, o jogo presenteia-nos com eventos e desvios, missões opcionais que nos dão experiência e mais conhecimento sobre o mundo do jogo. Um dos pontos fortes de Forspoken é que praticamente todas as ações nos dão experiência, que permite ensinar a Frey novos feitiços e habilidades.

Por outro prisma, o método de avanço no jogo não é muito linear. Aumentar de nível não aumenta diretamente as capacidades de Frey, tal como o seu ataque ou defesa, simplesmente fornecendo mais mana para gastar na compra de feitiços. Para melhorar estes valores, o jogador tem de investir em criar novos mantos e colares, assim como em dar upgrade a estes em torno. Existem também desafios que podemos tentar para cada um dos feitiços, que desbloqueiam também melhorias diretas às capacidades de Frey. Jogadores diferentes poderão ou não encontrar prazer em experimentar diferentes combinações com estas mecânicas.

E no tópico de combinações diferentes, algo que tem de ser reconhecido a Forspoken como um tremendo feito é a sua imensidade de opções. A dificuldade do jogo pode ser afinada com imensa granularidade, deste o grau de dano que os inimigos fazem a Frey e vice-versa, às poções serem usadas automaticamente, à quantidade de diálogo supérfluo que existe entre Frey e Cuff! Pessoalmente, tive de diminuir esta última opção, achei a quantidade de diálogo normal simplesmente excessiva.

Existem também imensas opções em termos de acessibilidade. Tamanho dos ícones, visibilidade dos itens no mundo e dos NPCs, escalas de cor para daltónicos, e a minha preferida, sem dúvida, a capacidade de mudar as unidades de medida para quilómetros.

No entanto… todos estes feitos técnicos não fazem de Forspoken um jogo divertido de se jogar. O ciclo de jogabilidade acaba por se tornar monótono, investigar uma nova zona, praticamente idêntica às anteriores, andar de marcados em marcador atrás de tesouros ou monumentos ou labirintos, em que as recompensas não são particularmente notáveis; fazer as missões opcionais na cidade, em andamos atrás de gatos ou a interagir com NPCs; ou claro, a jogar a história principal, na qual Frey é constantemente desagradável com toda a gente que encontra. Em defesa dela, as pessoas também são no geral desagradáveis com ela.

E é um pouco isso, não é? Forspoken é um jogo que se passa num mundo deprimente, cinzento, em que tudo está partido. As pessoas não são particularmente simpáticas, com algumas exceções, o ambiente é hostil e difícil de navegar sem um mapa, e nem a própria protagonista do jogo lá quer estar.

Sendo assim, como é suposto o jogador querer?

Há alturas em que o jogo parece querer ultrapassar estes fatores. Quando a Frey está a correr pelas ruas de Cipal atrás de gatos, ou quando a história do jogo é efectivamente interessante. Quando a Frey manda alguém à ***** e até tem piada. Quando se está a fazer parkour e o cenário de Athia voa por nós, saltos atrás de saltos, a trepar muralhas e penhascos.

Forspoken tem coisas boas. Tem estilo, por todos os cantos que se olhe, desde o menu, ao mapa, que é mais uma maquete tridimensional do que um mapa propriamente dito. Não ajuda muito na navegação, mas que é bonito é. O equipamento que vamos recolhendo é todo unicamente diferente e fora do comum, mantos e colares e designs para unhas.

Mas por trás de todo esse estilo, há uma certa falta de coerência. Os ambientes são bonitos, mas por muito que as personagens proclamem que cada região é diferente da outra, são todas muito iguais, montanhas e ruínas. Os gráficos das personagens tendem a ir para o realista, sem no entanto serem de particular alta-qualidade, causando a que pareçam especialmente pobres em contraste com o excelente cenário.  O equipamento tem quase sempre que ser dado upgrade antes de poder ser usado, tornando a experiência de encontrar um item novo de alegria numa certa resignação com ter de se refazer os upgrades que já se tinha no equipamento prévio.

Forspoken é um jogo que eu me esforcei por gostar. Mas após cinco, dez, vinte horas, nada mudava. A exploração continuava monótona. A história continuava desagradável. Ao menos, uma pessoa que decida jogar este jogo perceberá rapidamente se é para si ou não. Sem contar com as primeiras duas horas, que são maioritariamente cutscenes, o início do jogo é uma fatia perfeitamente representativa daquilo que este será durante toda a sua duração.

TL;DR: Forspoken é um jogo monótono e deprimente, com uma paleta de cores que varia entre o cinzento e o castanho, e personagens desagradáveis e antipáticas. Tem um sistema de combate vasto e variado, com imensas opções para afinar ao gosto de cada jogador, mas a sua componente de exploração deixa bastante a desejar. O design é sem dúvida inspirado, mas por outro lado a sua UI não é muito legível. A história poderia ser interessante… se não fosse a personalidade negativa de Frey. Mas pelo menos há gatos.

Prós:

  • Opções de acessibilidade incríveis, incluindo Português-Brasil nas legendas
  • Excelente dobragem em inglês
  • Bons gráficos ambientais
  • Gatos. Muitos gatos.

Contras:

  • Falta de legendagem Português-Portugal
  • Mundo deprimente e muito igual
  • Exploração pouco satisfatória
  • Gráficos faciais
  • Protagonista desagradável
Carolina Moreira
Com background de informática, e gosto em videojogos a combinar, mas aficionada de histórias em qualquer formato, juntou-se à equipa do OtakuPT em 2023 para dar uma opinião pessoal sobre o entretenimento que nos chega às mãos.
Subscreve
Notify of
guest

4 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente
Inline Feedbacks
View all comments
Felipe Soares
Felipe Soares
Membro
30 , Janeiro , 2023 20:36

Bem vinda Carolina. A análise está bem detalhada e isso me ajudou a entender os motivos para parte do pessoal achar que o jogo não valia o preço cheio.

Bruno ReisD
Bruno Reis
Membro
30 , Janeiro , 2023 21:39

Bem-vinda à redação Carolina. Gostei especialmente da forma como conduziste a análise, o texto está muito fluído e incisivo nas áreas mais importantes para o leitor.

Last edited 1 ano atrás by Bruno Reis
Lucius Artorius Pendragon
Lucius Artorius Pendragon
30 , Janeiro , 2023 23:57

Eu achei as vozes em inglês bem ruins, de resto concordo com quase tudo.

Naomi
Naomi
22 , Outubro , 2023 23:53

“Protagonista desagradável” como dizer que não percebes o contexto da história sem dizer que não percebeste o contexto da história. Discordo totalmente desses contras. A parte dos gráficos faciais nota-se que foste a uma publicaçao do twitter a gozar com o jogo e tiraste a conclusão do jogo a partir daí. Foste só na onda das reviews americanas mas prontos tens a tua opinião.

Last edited 4 meses atrás by Naomi