Anunciado em 2021, Lies of P é um “Soulslike” de ação e aventura desenvolvido pela produtora Sul Coreana Round8 Studio e lançado pela Neowiz que está atualmente disponível para PlayStation 4, PlayStation 5, Xbox One, Xbox Series e PC.
A narrativa de Lies of P inspirada no romance “As Aventuras de Pinóquio (Storia di un burattin)” do escritor italiano Carlo Collodi, acontece na cidade de Krat, um local visualmente apoiado na Belle Epoque do século XX que foi outrora próspera. Mas tudo mudou com o surgimento de um recurso energético chamado Ergo que interrompeu por completo a ordem natural entre humanos e as suas máquinas construídas com o propósito de servir e proteger os cidadãos de Krat. Por este motivo, os fantoches mecânicos acabaram por se rebelar contra os seus criadores e tudo o que tinha vida à sua volta, mas para além disso, parte dos sobreviventes foram ainda afetados por uma doença que os transforma em pedra.
Tal como na fábula de Carlo Collodi, em Lies of P assumimos também a pele de Pinóquio, um fantoche mecânico criado pelo mestre Gepeto que vamos comandar e refinar ao longo da aventura para encarar as máquinas e salvar a cidade deste acontecimento aterrador. Diferente do que assistimos habitualmente nos “Soulslike”, Lies of P tem uma narrativa bastante presente, servindo-se dela como meio para dar a conhecer as muitas áreas que teremos de investigar. Esta decisão feita pela Round8 Studio acaba por ser convidativa aos jogadores que desejam saborear pela primeira vez um jogo construído em torno da fórmula de Hidetaka Miyazaki, visto também apresentar uma dificuldade mais acessível em combate. Contudo, como é habitual para o género, parte do lore vai sendo descoberto por outros meios, a partir da narrativa visual, das personagens que conhecemos, em documentos espalhados pelos cenários e outros detalhes.
O que me deixou verdadeiramente surpreso foi a força da narrativa contada pelos personagens secundários. Embora servida em pequenos trechos, o impacto e a densidade de cada diálogo ilustra com sinceridade a melancolia vivida nesta ficção, combinando na íntegra com os elementos sombrios das ruas de Krat.
Em Lies of P conforme as escolhas que fazemos desbloqueamos diferentes finais.
A humanidade do nosso personagem também está aqui em questão. Pinóquio por ser um “rapaz” especial, é movido pela vontade de ser um jovem humano, o que torna esta jornada muito mais curiosa. Ao longo do jogo, a produtora aprofunda esta “metamorfose” com vários eventos que nos levam a questionar se devemos mentir ou falar a verdade, e é aqui que entra a dualidade entre o que é ser humano ou não.
Em termos de jogabilidade, a Round8 Studio estudou ao milímetro os elementos que compõem um “Soulslike”, moldando-a à sua forma sem querer inovar, mas a meu ver, homenagear de certa forma o que já foi feito anteriormente. Para quem jogou os títulos da FromSoftware, vai sentir-se em casa com algumas das “regras” do jogo. Em combate, continua a ser relevante haver estratégia, atenção à barra de stamina e ao peso do nosso equipamento, à esquiva e defesa no tempo certo para contra-atacar ou até memorizar os movimentos e pontos fracos dos inimigos para alcançar o sucesso.
Perceber como funcionam estas mecânicas em combate evita receber na maioria das vezes danos excessivos, principalmente quando dominamos o bloqueio perfeito para romper a defesa do oponente e desferir um ataque com danos maiores. Claro que parte do próprio jogador compreender qual o melhor método contra o oponente que tem à sua frente, decidindo se deve apostar no desenvolvimento de um personagem mais focado na força, agilidade ou mesmo no equilíbrio.
Em todo o caso, temos à disposição uma variedade de armas que proporcionam uma ampla gama de abordagens nos confrontos em Lies of P, desde espadas longas a bastões passando por adagas capazes de queimar ou envenenar o oponente. Ligado ao armamento, temos um sistema que permite criar novas armas com as que vamos colecionando ao longo do jogo. Cada lâmina pode ser combinada com o cabo de outra, afetando os atributos e habilidades que vamos utilizar em combate, o que nos dá margem para arquitetarmos criativamente o nosso próprio arsenal.
Dentro do Hotel, podemos comprar itens, treinar, ouvir música, aprimorar as nossas armas, desbloquear novos braços mecânicos e etc.
Em vez de um escudo, temos à nossa disposição o braço mecânico de Pinóquio, que é uma das ferramentas mais essenciais para o combate. O seu braço esquerdo funciona como uma arma secundária, que pode ser modificada para um gancho que traz os inimigos na nossa direção, um lança-chamas ou ainda um lança mísseis capaz de gerar dano à distância. Importante ressaltar que com apoio de Gepeto é ainda possível apostar na árvore de habilidades, a P-Organ. Através do item Quartzo que obtemos tanto em bosses como na exploração, somos capazes de desbloquear diversas habilidades passivas importantes para combate, como o aumento do ataque, menor consumo de stamina, aumento de Pulse Cells (item de cura) entre outras coisas.
Tudo isto leva a uma experiência personalizável com combinações impressionantes, tornando os confrontos dinâmicos e prazerosos, sobretudo contra os oponentes cruéis de Krat, especialmente os bosses, que nos obrigam a ter um olhar mais metódico relativamente aos seus ataques e movimentos, de modo a ajustar o nosso equipamento e estratégia às características que observamos.
A arquitetura dos níveis para os veteranos será tão familiar quanto o combate. Lies of P apresenta uma estrutura linear, com vários caminhos onde os curiosos podem ser recompensados com tesouros, colecionáveis, pontos de viagem (Stargazers) e sobretudo atalhos que fazem toda diferença para a exploração. Apesar da simplicidade, não deixamos de ter segredos para descobrir, zonas ocultas com bosses secundários, novas missões, e isso é muito gratificante para os jogadores que gastam horas a investigar cada canto do mapa.
Como é normal, não deixei de encontrar algumas limitações. Por exemplo, para melhorar os atributos de Pinóquio temos de nos deslocar ao Hotel Krat, o hub deste jogo. Com loadings à mistura, acaba por criar uma tendência cansativa que quebra por vezes o ritmo energético da exploração e combate. Já os oponentes comuns ao fim de umas horas tornam-se insignificantes para a dificuldade do jogo. Felizmente existe uma boa diversidade de inimigos, nomeadamente os bosses que entregam um emocionante desafio, que acaba por amortizar as pequenas falhas.
A direção artística é dos elementos que mais se destacou desde o lançamento do seu primeiro trailer. Lies of P apresenta cenários impressionantes que evocam o estilo gótico pós-industrial com as características já conhecidas do Steampunk. Existe muito detalhe em Krat, desde as ruas da cidade escuras e decadentes preenchidas pelos corpos das vítimas, os sons das máquinas e vozes dos sobreviventes, passando pelas capelas abandonadas até aos esgotos da cidade. Houve um cuidado especial em toda a composição visual que consegue expressar a natureza inserida pelos eventos narrativos do jogo. No entanto, em certas circunstâncias as texturas e a iluminação não carregaram tão fluidamente, mas nada de constrangedor.
O som é igualmente apelativo, principalmente quando jogamos com os headphones ligados onde a experiência ganha uma outra dimensão, ouvimos todos os elementos sonoros do mundo de Lies of P como se estivéssemos no seu interior. Já a banda sonora enquadra-se na perfeição com o ambiente do jogo, apresentando melodias clássicas e enigmáticas que ajudam a elevar a atmosfera ao mesmo tempo que nos fazem relembrar de algumas obras já conhecidas.
Lies of P vem demonstrar como a fórmula “SoulsLike” pode funcionar na perfeição quando é bem aproveitada. O Round8 Studio atingiu o seu objetivo ao construir um mundo rico em detalhes, com um uma narrativa empolgante de acompanhar até ao fim e um sistema de combate admiravelmente personalizável e encantador onde as lutas contra os bosses são sem dúvida um dos pontos altos do jogo. Lies of P não fica a dever nada aos títulos da FromSoftware, sendo uma das boas surpresas de 2023.
