Raramente um anime consegue deixar-me genuinamente desconfortável. Takopi’s Original Sin (Takopii no Genzai) conseguiu-o de uma forma que ainda hoje me faz questionar se alguma vez voltarei a ver infâncias retratadas da mesma forma na animação japonesa. É um lembrete de que a felicidade nem sempre é fácil de encontrar, especialmente quando se está preso num ciclo de dor e desespero.
Esta obra, baseada no manga de Taizan5, não é propriamente uma série no sentido tradicional, trata-se mais de um OVA composto por 6 episódios que funcionam como uma narrativa fechada e devastadoramente eficaz. A premissa inicial parece quase ingénua: um alienígena chamado Takopi aterra na Terra com o objetivo de fazer as pessoas felizes. O que se segue é uma exploração brutal de temas como bullying, negligência familiar e trauma infantil.
Uma sinopse enganadora: A realidade crua por trás da missão de Takopi
A história de Takopi’s Original Sin começa com Takopi, um ser alienígena do Planeta Feliz, que aterra na Terra com a nobre missão de disseminar a felicidade. Contudo, o seu otimismo inabalável colide de frente com a dura realidade de Shizuka Kuze, uma menina de 9 anos que vive num inferno pessoal. Shizuka é vítima de bullying severo na escola, negligenciada em casa, encontra consolo apenas na companhia do seu cão, Chappy. Takopi, na sua inocência, tenta usar os seus “Gadgets Felizes” para ajudar Shizuka, mas a situação rapidamente escala para um ponto de não retorno quando Shizuka, desesperada, usa um desses gadgets para tentar o suicídio.
Este evento chocante serve como catalisador para uma série de viagens no tempo, onde Takopi, com a sua persistência ingénua, tenta repetidamente alterar o passado para salvar Shizuka da sua dor. No entanto, cada tentativa de “corrigir” a linha temporal apenas revela camadas mais profundas de sofrimento e trauma, não só em Shizuka, mas também nos seus agressores e naqueles que os rodeiam. A narrativa explora a ideia de que nem todos os problemas podem ser resolvidos com uma simples intervenção, e que as ações, mesmo as bem-intencionadas, podem ter consequências imprevisíveis e devastadoras. A série não se esquiva de temas pesados, como a violência, a morte e o desespero, apresentando-os de forma crua e sem floreados.
Temas profundos e perturbadores: Um espelho da realidade humana
O que mais impressiona em Takopi’s Original Sin é a forma como não romantiza nem suaviza a realidade das crianças em situações vulneráveis. Shizuka, vive um inferno doméstico que o anime retrata sem filtros desnecessários, mas também sem sensacionalismo gratuito. O bullying escolar é apresentado com uma crueza que incomoda, precisamente porque reconhecemos nele padrões reais e devastadores.
O bullying é central na narrativa, retratado não apenas como atos de agressão física e verbal, mas também como um ciclo vicioso de trauma que se propaga de geração em geração. A série explora as raízes do comportamento de Marina, a principal agressora de Shizuka, revelando que a sua crueldade é, em grande parte, um reflexo da sua própria dor e do abuso que sofre em casa.
A série sugere que os pais, muitas vezes inconscientemente, perpetuam ciclos de dor que afetam profundamente os seus filhos, levando a comportamentos autodestrutivos e a relações interpessoais complexas. A saúde mental é outro tema crucial, com a série a ilustrar o impacto devastador da depressão e do desespero na vida de Shizuka e de outros personagens.
Takopi, o protagonista alienígena, funciona como uma metáfora interessante sobre a intervenção externa em situações de abuso e negligência. As suas tentativas bem-intencionadas de “resolver” os problemas das crianças frequentemente agravam as situações, refletindo a complexidade real deste tipo de intervenções. Não há soluções fáceis nem finais completamente satisfatórios.
Um dos aspetos mais intrigantes da série é a forma como lida com o conceito de tempo e as suas consequências. As repetidas viagens no tempo de Takopi, embora bem-intencionadas, demonstram que nem sempre é possível “corrigir” o passado. Algumas feridas são demasiado profundas, e certas ações têm consequências irreversíveis. Esta abordagem niilista, mas realista, da viagem no tempo, distingue Takopi’s Original Sin de muitas outras obras que usam o conceito de viagem no tempo como uma ferramenta para a redenção fácil. Em vez disso, a série enfatiza que a cura e a mudança vêm da aceitação e do confronto com a realidade, por mais doloroso que seja.
O Lado Sombrio da Felicidade
O ritmo da narrativa é implacável. Cada episódio constrói uma tensão emocional que raramente encontram noutras obras do género. Não há momentos de alívio cómico forçado nem tentativas de amenizar o impacto das situações retratadas. Esta consistência de tom é simultaneamente a maior força e o maior desafio do anime.
Fica aqui o aviso, Takopi’s Original Sin não é adequado para todos os públicos, apesar do seu protagonista alienígena aparentemente infantil. Os temas abordados são pesados e podem ser particularmente difíceis para quem tenha vivido experiências similares às retratadas. É uma obra que exige maturidade emocional do espectador.
Visualmente, Takopi’s Original Sin é uma obra-prima de contrastes. O design de Takopi, com a sua aparência de desenho animado infantil, choca com a crueza dos temas abordados. Este contraste intencional amplifica o impacto emocional da série, tornando as cenas de sofrimento ainda mais perturbadoras. A animação, muitas vezes desenhada à mão, evoca uma atmosfera caprichosa de programas infantis, mas rapidamente transita para tons mais sombrios quando a narrativa o exige. Esta dualidade visual é um dos pontos fortes da série, sublinhando a dissonância entre a inocência de Takopi e a brutalidade do mundo real
A banda sonora merece também destaque. Consegue equilibrar a melancolia necessária sem nunca se tornar manipulativa ou excessivamente dramática. Cada nota parece escolhida para amplificar a emoção genuína das cenas, sem forçar reações.
Se existe algo que se vai destacar no anime é precisamente o seu poder de incomodar. Takopi’s Original Sin não procura o nosso conforto como espectadores. Força-nos a confrontar realidades que preferíamos ignorar e questiona a nossa própria passividade face ao sofrimento. É um anime de qualidade que foge completamente ao que estamos habituados a ver.
Numa indústria frequentemente criticada pela infantilização ou idealização excessiva de personagens jovens, Takopi’s Original Sin lembra-nos que as crianças são seres humanos complexos, capazes de sofrimento profundo e merecedores de histórias que reconheçam essa realidade.
Uma obra essencial, mas não para todos
Takopi’s Original Sin é um anime que desafia, provoca e, em última análise, recompensa o espetador com uma narrativa profundamente comovente e perspicaz. É uma obra que se atreve a explorar as profundezas da dor humana, a complexidade das relações e a busca incessante por um vislumbre de felicidade num mundo imperfeito. Embora não seja uma experiência fácil, a sua honestidade brutal e a sua execução artística impecável tornam-na uma obra obrigatória para qualquer fã de anime. Se procuram uma história que vos vai fazer pensar, sentir e questionar, e se estão preparado para enfrentar a escuridão antes de encontrar a luz, Takopi’s Original Sin é uma obra que merece ser vista.