Num mercado cada vez mais saturado por estilos de jogos idênticos é fácil que muitas experiências se confundem umas com as outras. Os sistemas repetem-se, as mecânicas sobrepõem-se e o que sobra, na maioria dos casos é um loop de tarefas recicladas sob uma nova abordagem visual. No entanto, por vezes, surgem projetos que mesmo funcionando dentro de géneros familiares, destacam-se pelo seu conceito. The Alters, da 11 bit studios, surpreende exatamente com uma experiência que se apoia em fórmulas conhecidas mas que as subverte através de uma ideia interessante, quase filosófica.

Curiosamente, fez-me lembrar Mickey 17, o mais recente filme de Bong Joon-ho (realizador de Parasite), onde também se explora a ideia de identidade, multiplicidade e sacrifício.

A narrativa de The Alters é o elemento mais extraordinário e diferenciador do jogo. Nesta jornada de ficção científica somos colocados na pele de Jan Dolski, um humilde trabalhador que depois de uma aterragem inusitada fica preso num planeta hostil. Na primeira hora, o nosso protagonista percebe que há urgência em sobreviver e para isso precisa de recorrer a uma tecnologia quântica que o permite criar os chamados “Alters”, clones de si mesmo que representam um caminho de vida que poderia ter seguido.

Atmosfera densa começa a notar-se logo nos primeiro momentos.

É neste ponto que The Alters sobressai. Em vez de tratar os seus clones só como ferramentas, o jogo força-nos a confrontar quem somos e quem poderíamos ter sido. Cada Alter tem uma função importante para a gerência da nossa base, técnico de máquinas, cientista, médico, botânico, mas também apresentam uma personalidade diferente, com emoções, medos e histórias de vida muito próprias. Isto cria uma estrutura emocional que vai além do simples micromanagement típico dos jogos de sobrevivência, é necessário conhecer melhor os nossos outros clones, criar elos e resolver conflitos.

The Alters apresenta múltiplos finais com base nas decisões que fazemos.

A estrutura da narrativa vai progredindo através de interações diárias, pequenos diálogos, crises internas e momentos de reflexão que surgem entre as tarefas. A convivência com os “Alters” vai-se tornando gradualmente mais intensa, havendo espaço para frustrações, invejas, afetos e, por vezes, confrontos entre eles. The Alters constrói um enredo orgânico e por vezes filosófico, moldado essencialmente pelas nossas escolhas, tanto práticas como emotivas. No fim, percebemos que a sua história é tudo menos sobre sobreviver num planeta desconhecido, mas sim sobre a sobrevivência de uma identidade fragmentada.

O sistema de gestão não serve apenas para manter a base a funcionar, está também diretamente ligada à sobrevivência e à forma como a história se desenvolve. Estamos no interior de um planeta onde a radiação do Sol se aproxima a cada dia que passa e a nossa base precisa de se mover constantemente para se afastar deste perigo. Para isso, precisamos de diariamente recolher recursos, gerar energia, fazer comida, reparar máquinas e construir novos módulos, tudo isso à medida que gerimos os nossos “Alters”.

As decisões que tomamos afetam tudo à nossa volta. Se decidimos construir um novo gerador ou uma maquina de extração, isso consome tempo, materiais e energia. Se mandam um Alter indisposto para uma missão fora da base, ele pode falhar ou até recusar. Mesmo os afazeres mais comuns, como cozinhar, criar medicamentos ou fazer pesquisas, precisam de ser bem coordenados, já que nem sempre temos o que precisamos para assegurar o ciclo.

Um dos Alters de Jon.

É verdade que este ciclo pode tornar-se repetitivo, mas é precisamente através dele que conseguimos cumprir os objectivos que nos são propostos e é também a única forma de fazer avançar a narrativa, que, só por si, já justifica o esforço.

Explorar este planeta desconhecido é crucial para garantir a sobrevivência e o jogo tem à disposição várias mecânicas para isso. Podemos enviar as nossas replicas em expedições para recolher diferentes recursos, como metais ou até rapidium. Para facilitar a recolha dos recursos que se encontram afastados da nossa “casa”, é importante que tenhamos instaladas torres de deslocação, máquinas de extração de recursos e unidades de energia temporárias. Assim como na narrativa, precisamos de planear minuciosamente as expedições: tendo em mente o tempo que levamos a alcançar uma zona, a quantidade de energia que gastamos e o risco de encontrar anomalias que podem afetar o sucesso da missão.

Cada deslocação pode originar consequências. Um “Alter” pode regressar ferido, sem energia ou perturbado com o que encontrou e outras vezes, pode voltar com novidades ou reflexões que enriquecem o enredo. Como temos de escolher quem enviar, com base nas habilidades e no estado mental de cada um, cada missão torna-se também uma decisão fulcral para a narrativa, ou seja, enviar o clone certo no momento certo pode fazer toda a diferença.

Andar a recolher recursos pelas diferentes zonas do planeta, não foi o meu momento preferido do jogo, talvez por ser um processo demorado. Felizmente, há um bom equilíbrio entre esta componente essencial para a sobrevivência e a evolução da narrativa, o que ajuda a manter o interesse ao longo do tempo.

O planeta.

Quanto ao planeta, embora inóspito, não apresenta as habituais criaturas hostis nem confrontos diretos que estamos acostumados a lidar na maioria dos jogos. O verdadeiro antagonista aqui é o ambiente e o tempo. Sobreviver exige adaptação constante e a capacidade de lidar com a permanente sensação de que tudo pode correr mal a qualquer momento. Basta uma má decisão na gestão da base para sermos engolidos por uma explosão solar e, para nosso azar, teremos de recomeçar o dia a lidar com as consequências dos nossos erros.

Há sempre uma carga emotiva em cima dos nossos ombros, presente em quase todas as decisões que tomamos ao longo do jogo. Não se trata apenas de gerir recursos ou construir módulos, trata-se de lidar com versões alternativas de nós próprios, com as suas emoções, arrependimentos e expectativas.

Este realismo emocional, longe de ser superficial, é incrivelmente apelativo. Hoje em dia é raro ver um jogo que consegue transmitir tão bem o impacto psicológico de viver sob pressão constante, de ser confrontado com múltiplas versões de nós mesmos e de ter de lidar com as suas fragilidades. Em The Alters a emoção não está só nos diálogos, está na gestão, nas tarefas e falhas, o que torna a experiência profundamente humana.

As animações transmitem muito bem o que os personagens estão a sentir.

Os gráficos de The Alters apoiam muito bem o seu tom introspectivo e sombrio. A direcção artística impressiona com ambientes minimalistas, que conseguem transmitir a hostilidade do planeta através de uma estética crua e contida, sem recorrer aos exageros típicos do género. A caracterização dos “Alters” é outro dos pontos fortes. Apesar de partilharem o mesmo rosto, cada versão de Jan apresenta detalhes distintos, seja na postura ou na forma de vestir, que refletem a sua personalidade e o percurso de vida que seguiram. São diferenças que ajudam a tornar cada “Alter” mais humano e credível. Ainda assim, não deixei de reparar que em certas situações as animações nem sempre funcionam como esperado, com personagens a atravessar paredes ou interações que nem sempre parecem naturais.

Alex Jordan é conhecido pelo seu trabalho em Dragon Age: The Veilguard e Cyberpunk 2077.

A componente sonora segue a mesma lógica minimalista dos visuais. A banda sonora é composta basicamente por efeitos e sons discretos, que nunca se impõem, mas reforçam de forma eficaz a tensão que se vive ao longo do jogo. O destaque vai para a interpretação dos próprios “Alters”, todos dobrados por Alex Jordan, que consegue entregar diferentes nuances de cada versão de Jan.

Em suma, The Alters é uma experiência única que se destaca não pela ação, mas sim pela sua carga emocional e sobretudo pelo seu conceito original. A gestão e a narrativa estão profundamente ligadas e a presença dos “Alters” transforma cada decisão numa reflexão sobre a identidade, arrependimento e sobrevivência. Apesar de alguns problemas a nível de ritmo, o jogo oferece uma abordagem refrescante e madura ao género. Para os jogadores que procuram algo mais introspectivo, humano e que apreciam um bom sci-fi, The Alters é certamente uma aposta segura.

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