A série The Legend of Heroes há muito deixou de ser um fenómeno de nicho e está hoje totalmente estabelecida também no Ocidente e desde que foi apresentada sem nenhum aviso numa Nintendo Direct ficou imediatamente nos radares dos jogadores em todo o mundo. Já são doze jogos no total, isto se contarmos apenas com a série principal e excluirmos spin-offs, tais como Ys vs. Trails in the Sky: Alternative Saga, que está prestes a ser lançado no ocidente. Naturalmente, um número tão elevado de títulos pode intimidar ou até afastar potenciais jogadores, sobretudo quando todas as histórias estão interligadas.
Como o Ocidente apenas se apercebeu do valor de The Legend of Heroes a meio do arco do Império de Erebonia, muitos jogadores sentiram dificuldades em entrar na série e durante anos este foi um tema polémico entre os fãs mais dedicados e os novatos. A própria Nihon Falcom Corporation gradualmente também se tornou consciente deste problema, e do facto de que The Legend of Heroes era um título demasiado genérico para a atualidade.
Por isso, no vigésimo aniversário do lançamento original no Japão, a produtora decidiu levar antigos e novos fãs de volta ao início… literalmente. Contudo, o risco de um remake é sempre elevado e, com um clássico tão adorado, existe sempre o perigo de fragmentar a base de fãs, algo que vimos acontecer com a trilogia moderna de Final Fantasy VII. Até que ponto se deve manter a fidelidade ao original e onde se introduzem mudanças? Como fã das aventuras dos heróis lendários de Zemuria e especialista da série The Legend of Heroes no OtakuPT, procurei responder a esta questão na minha análise a Trails in the Sky 1st Chapter.
Para contextualizar, Trails in the Sky 1st Chapter faz parte de uma série originalmente intitulada The Legend of Heroes, que, por sua vez, integra outra série chamada Dragon Slayer. Por isso, quando foi lançado para PC em 2004, The Legend of Heroes: Trails in the Sky FC recebeu o número “VI”, já que anteriormente tinham sido lançadas a duologia Dragon Slayer e a trilogia The Legend of Heroes, mais conhecida como a Ghargav Trilogy.
Voltamos ao Reino de Liberl, que dez anos antes esteve em guerra com o Império de Erebonia. Se a paz se vai manter é incerto. Ao contrário de muitos JRPGs com enredos semelhantes, a narrativa centra-se em dois protagonistas, Estelle e Joshua Bright, ambos com dezasseis anos. Algo que adorei desde já neste ponto e em comparação com muitos jogos deste género, é o facto da história tratar os protagonistas como verdadeiros “iguais”. Não se destacam por serem melhores do que os outros, mas sim porque, quando as circunstâncias lhes permitem brilhar, simplesmente brilham. Este tipo de registo parecia ter sido abandonado desde Tales of Vesperia, curiosamente também existe uma Estelle nesse jogo.

Mas não divaguemos demasiado. Joshua foi adotado pelo pai de Estelle cinco anos antes, e a aventura começa quando ambos concluem o seu treino para se tornarem Bracers, defensores que protegem os cidadãos e resolvem os seus problemas diários. Se Crossbell se inspirou nos Estados Unidos, Erebonia na Alemanha, e Calvard em França, acredito que o Reino de Liberl tenha partido da Inglaterra porque é regido pela monarquia. Os nomes e a arquitetura também remetem para a Inglaterra do século XVI, e as primeiras orbments, cujos quartz elementais podemos inserir e combinar para criar Arts cada vez mais poderosas, e engrenagens lembram a revolução industrial britânica do século XVIII.
À semelhança de todos os primeiros capítulos de um arco, a história avança lentamente. Após o exame final, Estelle e Joshua realizam pequenas missões enquanto Bracers. Mas tudo muda quando o pai de Estelle parte numa viagem de dirigível e desaparece misteriosamente. Determinados a encontrá-lo, os protagonistas iniciam a sua aventura que rapidamente se transforma numa conspiração maior.
Este remake usa um novo motor proprietário e o resultado é uma apresentação superior até no futuro The Legend of Heroes: Trails Beyond the Horizon. Logo no início, o encontro de Joshua, recém-chegado à família Bright, com a impetuosa Estelle, demonstra o cuidado e a dedicação da Nihon Falcom Corporation no departamento visual. Embora o original já fosse em pseudo-3D, isto se considerarmos a perspetiva isométrica, agora sentimos mais proximidade e expressividade. Cada cena e cada diálogo está totalmente animado, e os momentos mais importantes receberam atenção especial para reforçar a sua relevância.
A expressividade facial é um dos pontos altos deste relançamento. O sorriso maroto da Estelle, as reações exageradas dos seus aliados às suas artimanhas, olhos em espiral ou a brilhar, ou até uma bola de ranho durante o sono. Enfim, foram este pequenos detalhes que aproximam Trails in the Sky 1st Chapter de um tom mais leve e cómico, afastando-o do peso excessivo que marcou os capítulos mais recentes, sobretudo no arco da República de Calvard. Os novos filtros de anime com cores saturadas e efeitos de luz e sombras superiores também permitem ainda mais unificar os seus visuais como um grande núcleo.
Revisitar este jogo nesta nova forma foi um prazer. O equilíbrio entre humor e seriedade é notável. Como seria de esperar o bardo viajante Olivier, continua a roubar todas as atenções sempre que entra em cena, e fiquei agradavelmente surpreendido com o cuidado dado às suas cenas mais célebres.
Joguei com o áudio original japonês, como é habitual, já que a versão inglesa soa algo artificial para a idade dos protagonistas, sobretudo para o Joshua. Os novos seiyuu fizeram um excelente trabalho, e alguns veteranos, como Takehito Koyatsu, regressaram e sejamos honestos, ninguém além deste excêntrico e talentoso seiyuu poderia dar vida à dimensão e dualidade de Olivier.
Contudo, nem todos os diálogos têm voz, mas os momentos principais estão dobrados. Por vezes apenas uma personagem fala, o que quebra a imersão, mas felizmente é raro. As conversas adicionais na exploração e até durante as batalhas contra bosses estão totalmente dobradas para enriquecer ainda mais a experiência. A música, felizmente, permanece intocada, embora exista uma opção para colocarmos todas as faixas musicais com ligeiros arranjos modernos. Clássicos como “Sophisticated Fight”, embora prefira a versão “Zanmai”, ou The Whereabouts of Light continuam tão memoráveis quanto antes. São melodias que vos vão acompanhar para sempre.

Os NPC mudam de falas ao longo da história e comentam os acontecimentos consoante o capítulo, o que dá enorme vitalidade e justiça ao mundo. Apesar de alguns arquétipos típicos do estilo japonês, a localização é sólida, sem frases sem sentido ou abusos de memes, como aconteceu em parte no arco de Erebonia pela NIS America. Ainda assim, lamento a ausência do humor característico da localização original da XSEED Games.
O sistema de combate recebeu várias mudanças. À semelhança de The Legend of Heroes: Trails through Daybreak, em Liberl já é possível atacar inimigos visíveis no mapa e nas masmorras em tempo real com esquivas e ataques básicos. Podemos ainda atordoá-los e depois entrar em combate tático. Contra bosses, o sistema mantém-se por turnos. Infelizmente as Z.O.C, ou o uso de Arts durante o modo de batalha rápido não foram resgatadas, mas as “Brave Orders” introduzidas em The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel III, fazem o seu regresso com ataques combinados e boosts de Arts e até S-Crafts durante os combates por turnos.
As batalhas foram polidas, e tal como nos jogos mais recentes é possível mover a personagem e atacar na mesma ação, as Arts têm maior alcance, a gestão de Quartz está mais limpa e acessível, os jogadores podem “roubar” bonificações no turno dos adversários e a nova mecânica Overdrive além de retirar estados alterados também confere buffs temporários às personagens. Nas oficinas agora também é possível atualizar armamento com U-Materials, um elemento adotado dos capítulos mais recentes. Como um todo confirmo que o equilíbrio geral foi afinado para reduzir o excessivo grind inicial do jogo original. A dificuldade “Nightmare” continua exigente mas justa, sobretudo contra os adversários humanos que usam e abusam do seu overdrive. Outro destaque é a inclusão de marcadores no mapa, um alívio para quem como eu, gosta de completar todas as quests, recolher todos baús e receber todas as conquistas. Embora tirem parte da exploração, evitam a necessidade de jogar sempre com guias à mão. Em termos de jogos desta série este é um dos mais curtos, o que para muitos pode até ser um ponto positivo.

Tecnicamente, Trails in the Sky 1st Chapter pode parecer um produto datado a um olhar mais superficial, mas nada está mais longe da verdade. Confesso que estava bastante reticente com o afastamento de Durante e da PH3, já que, com a NIS America, todos os jogos não só incluíam melhorias e novas funcionalidades, como também eram produtos sólidos.
A entrada da estreante GungHo Online Entertainment na série deixou-me cético, pois temi que não estivesse à altura de criar jogos dignos da dimensão desta genial série. Felizmente, essas dúvidas dissiparam-se com a demo lançada em agosto deste ano, que não só conseguiu eliminar qualquer incerteza, como ainda alcançou a proeza de melhorar aquilo que já tinha sido anteriormente bem feito. Tal como eu, muitos ficaram hesitantes quanto à capacidade de uma editora estreante em reproduzir os elementos e funcionalidades trabalhadas ao longo de décadas por Durante e pela sua equipa. Felizmente, a GungHo Online Entertainment não só esteve atenta, como também acrescentou ao seu pacote a robustez característica das suas ports.
Não sei que magia negra a GungHo Online Entertainment aplicou nesta port, mas em nenhum momento senti que o jogo perdesse FPS. Cenas cinemáticas em grande plano, aldeias cheias de NPCs, transições entre campos e aldeias, ou até batalhas caóticas repletas de inimigos, todos estes elementos costumam ser sinónimo de stutters e longos carregamentos, certo? Pois bem, em Trails in the Sky: 1st Chapter não existiu nem um único soluço ou ecrã de loading em qualquer momento.

Na build já conhecida, em resoluções 4K, o jogo manteve-se estável, sem nunca quebrar abaixo dos 120 FPS, mesmo com todas as definições gráficas no máximo dos máximos, que acreditem não devem nada aos lançamentos de Durante e a PH3. Ao ligar esta mesma build a um monitor MSI MPG 321URX QD-OLED, o jogo conseguiu atingir sem grande esforço a fasquia dos 240 Hz a 4K, embora, a esta taxa, a fluidez não fosse tão consistente, E sabem que mais? O jogo, nesta fase, não dispõe de suporte a tecnologias de SuperSampling, o que indica que toda a renderização foi produzida de forma nativa. Um feito verdadeiramente admirável, sobretudo porque, nesta era, a GungHo Online Entertainment conseguiu entregar uma port para PC com a robustez e consistência dignas de um jogo de consolas. Trails in the Sky: 1st Chapter também prova aquilo que vos tenho dito há anos e como a Nintendo consegue fazer mais por muito menos. Isto porque uma direção artística é muito mais importante do que modelos hiper-realistas num jogo quando a estética assim o permite.
A estética anime neste jogo foi um verdadeiro deleite para os olhos e para a mente, não só porque encaixou na perfeição no espírito do jogo, ou seja, a vossa típica história Shonen, como também permite proezas tecnológicas sem grande esforço, tais como modelos e ambientes requintados e detalhados, transições inexistentes entre aldeias, cidades, campos e batalhas, sem erros, crashes, stutters ou outras inconsistências técnicas que hoje em dia infelizmente são tão comuns em jogos Day 1. As tradicionais funcionalidades de botões específicos para comandos, suporte para rato e teclado, campo de visão ajustável e múltiplas slots para salvamento de partidas também foram incluídas, mesmo tratando-se indiretamente de um produto “diferente”. Para finalizar, o jogo contém textos em inglês, francês e espanhol, mas, infelizmente, ainda não foi desta que os nossos leitores do outro lado do mundo poderão desfrutar de textos em português do Brasil.
Durante anos, esta pergunta voltou vezes sem conta: “Por onde devo começar a jogar?” Finalmente, a resposta está ao alcance de todos com este jogo simplesmente genial. Para além de ser o primeiro da série, é a forma definitiva de iniciarem a vossa viagem pelo Continente de Zemuria. Robusto, cativante e fiel ao que tornou a série num verdadeiro clássico e não só consegue a ousadia de repetir essas mesmas proezas para uma nova geração de jogadores como fazer qualquer um se render às produções da Nihon Falcom Corporation. Com a segunda parte já confirmada, todo o tempo que dedicarem ao Reino de Liberl será recompensado, garantindo que cada momento vivido se transformará numa experiência verdadeiramente memorável e prova que um remake feito com carinho e dedicação pode ser muito mais do que uma simples oportunidade gerar dinheiro facilmente.