Meus Deus que jogão! Esta é a frase que encontrei para descrever tudo o que senti ao jogar Clair Obscur: Expedition 33, o jogo de estreia da Sandfall Interactive na indústria dos videojogos. Acreditem que não estou a exagerar, é que realmente ainda não consigo acreditar como é que um estúdio francês com apenas 30 pessoas, muitas das quais ex-membros da Ubisoft, praticamente saído do nada, conseguiu produzir o Final Fantasy que ansiávamos há décadas.
Não me interpretem mal, adoro a série Final Fantasy, especialmente a trilogia moderna de Final Fantasy VII. Mas sejamos sinceros, há anos que ansiávamos por um Final Fantasy com os elementos das nossas adolescências, ou seja, com o ADN do antigamente, mas com a tecnologia e os avanços dos tempos modernos. Personagens memoráveis e carismáticas, uma história envolvente, uma banda sonora soberba, grafismos de elite, diversos mini-jogos, mapa mundo explorável e claro, combates por turnos. Pois bem, Clair Obscur: Expedition 33 consegue tudo isto e muito mais, mas sem divagar demasiado vou começar por vos apresentar a estrutura base, a sua narrativa.
Sempre que a Pintora acorda e pinta um número num monólito todas as pessoas com a idade correspondente ao número em questão tornam-se num mar de rosas e desaparecem. Sempre que este ciclo se repete, um grupo de corajosos, parte numa expedição para tentar impedir a próxima pintura. No entanto, nenhum voltou e a Pintora continua a governar o destino do mundo com bem deseja.

A história introduz-nos à Expedição 33, o nome da última cifra inscrita no monólito. Sinceramente gostaria de vos revelar mais sobre o enredo, mas julgo que estaria a estragar muitas surpresas, só vou referir que a equipa da Sanfall Interactive retirou bastantes indicadores narrativos da célebre série Attack on Titan, onde como sabem nem tudo é preto no branco no canvas narrativo, mas sim cinzento, ou seja, tal como a obra de Isayama esta é uma história para descobrir e jogar com o mínimo de informação possível prévia.
Clair Obscur: Expedition 33 apresenta-se como um RPG por turnos inspirado nos clássicos do género. É impossível não pensar imediatamente nos Final Fantasy da era da PlayStation, e do clássico criado pela mesma equipa, Lost Odyssey. Contudo, também se sentem ecos de outras referências de outros géneros e séries tais como Persona, ou os galardoados títulos Soulsborne que tomaram a indústria de assalto! Estes elementos são notórios no desenrolar do jogo, sobretudo nos combates, um dos maiores destaques do jogo. As batalhas começam ao entrarmos em contacto com os inimigos nos ambientes e decorrem por turnos, mas incluem várias mecânicas em tempo real, tais como o premir botões no momento certo para potenciar ataques, apontar manualmente a pontos fracos, esquivar, bloquear ou até contra-atacar após aparadas que arrancam um sorriso na cara mais sisuda.
Chegou ao ponto de em certas alturas parecer que estava diante de um jogo de ação ou até de ritmo. Bloquear com sucesso todos os poderosos combos de um boss, enquanto combinava esquivas, saltos e contra-ataques, deu-me uma sensação de domínio que julgava impossível de transitar para um género mais tático e passivo. Os fãs de RPG mais clássicos certamente que deram um passo atrás ao ouvir esta afirmação, mas podem ficar descansados porque no fim do dia os números e as táticas continuam a ser os elementos mais predominantes. Se estivermos devidamente equipados e com o nível certo, os combates tornar-se-ão mais acessíveis mesmo sem grande destreza nos controlos.
O contrário também é possível, se o inimigo estiver muito acima do nosso nível, existe uma réstia de esperança para o derrotar se soubermos antever ou assimilar os seus padrões de ataque e acertarmos com o timing. No caso dos bosses mais exigentes, é necessária uma combinação de ambos. Numa das primeiras áreas podemos lutar com um boss opcional com um trompete que pode derrotar a expedição numa fração de segundos. No entanto, se conseguirmos assimilar a sua cadencia de golpes a ponto de os evitar ou contra-atacar é possível emergirmos como vencedores e o resultado é uma das melhores armas para Lune, um dos membros da expedição. Dito isto, existe um risco-recompensa constante em cada batalha, algo que torna os combates sempre variados, únicos e desafiantes.
Outro ponto brilhante deste sistema é a forma como cada personagem é realmente distinta. Cada membro da equipa tem um estilo muito próprio, e para tirar o máximo partido das suas capacidades, é essencial perceber as suas mecânicas. Não basta carregar na habilidade mais poderosa para ver números a povoar o ecrã. Gosto especialmente de como os PA, os equivalentes ao MP se geram através de ataques básicos e ações específicas, e como as batalhas giram em torno de os produzir e gastar. O mesmo se aplica aos consumíveis, que são reabastecidos ao descansar nas bandeiras anteriormente deixadas pelas anteriores expedições. Visualmente, os combates são um espetáculo cinematográfico tremendo com ângulos de câmara dinâmicos e efeitos impressionantes, sobretudo contra inimigos excêntricos de grandes dimensões, existe uma referencia divertida a One-Punch Man no jogo será que a conseguem descobrir?
Como um todo estamos perante um dos melhores sistemas de combate por turnos de todos os tempos e o mais surpreendente é que mesmo após dezenas de horas continuo a descobrir novas táticas e sinergias entre membros da expedição. A progressão também é digna de destaque. Para além da seleção de armas, cada personagem pode equipar Pictos e Luminas, elementos que oferecem bónus passivos variados. Pode parecer pouco entusiasmante, mas acreditem que existe uma quantidade quase infindável de opções e os seus efeitos combinados são absurdamente eficazes.
A única crítica que aponto neste quesito é a falta de organização dos menus de gestão. Infelizmente senti que são pouco intuitivos e, com tantas opções acabei por ficar confuso e consequentemente perdido no meio de tanta informação. No geral, todos os menus de Clair Obscur: Expedition 33 mereciam uma revisão, pois por vezes não se percebe que Pictos estamos a selecionar ou sequer o menu onde estamos. O mesmo acontece na interface de combate que foi claramente inspirada em Persona, que tal como a série da ATLUS trocou estilo por substância e funcionalidade.
Quanto ao cenário e exploração, confesso que estava apreensivo porque os RPGs modernos tendem a deixar este elemento de lado. Felizmente com Clair Obscur: Expedition 33 este não foi o caso. As principais áreas são compostas por níveis interligados, com vários caminhos, atalhos, encontros com mini-bosses e segredos que recompensam a curiosidade do jogador e aprecio como a estrutura destes níveis deixa claro qual é o caminho principal e quais os secundários para permitir ao jogador desfrutar da aventura sem um guia aberto ao seu lado para não perder pitada.
Julgo que nas vossas mentes começaram a ter déjà-vus dos controversos corredores de Final Fantasy XIII, mas podem ficar descansados que a estrutura não é linear, aliás longe disso. O design é competente e, por vezes, surpreendentemente elaborado. Para aceder a estas zonas, usamos um mapa mundo, um dos elementos clássico de RPGs que confesso sinto imensas saudades. Para mim nada é melhor que a liberdade de viajarmos entre localizações enquanto assistimos a diversos elementos e localizações no próprio cenário, e ansiamos descobrir meios para viajar até uma pequena cabana que se encontra inacessível e certamente esconde grandes bonificações para as nossas personagens. Para os jogadores mais novatos nestas andanças no início este tipo de exploração é limitado, mas quando se abre oferece dezenas de áreas diferentes, desafios e recompensas que o mundo com os avanços tecnológicos parece que se esqueceu.
Tal como a maioria dos jogos do antigamente, algumas destas áreas são povoadas por ameaças formidáveis e não faltaram momentos onde que me senti verdadeiramente “fraco”. Mas é esta a verdadeira essência da exploração nos RPGs clássicos, ou seja, não têm medo de deixar conteúdo por fazer, áreas secretas e eventos raros para mais tarde recompensar a exploração genuína. Quem nunca quando jogava Final Fantasy VII e adquiriu o submarino da Shinra sentiu curiosidade de ter um encontro mais próximo com uma certa máquina verde que navegava no fundo do oceano e acabou por ter uma esmagadora surpresa?
O jogo oferece três níveis de dificuldade: História, Expedicionário e Especialista. O modo Expedicionário equivale à dificuldade normal e é recomendado para fãs de RPGs por turnos, enquanto o Especialista é para os fãs de jogos de ação que dominam as mecânicas em tempo real e procuram um verdadeiro desafio. Joguei no modo Expedicionário para obter o melhor equilíbrio entre ambos. Os combates podem ser exigentes mas existe sempre formas de os facilitar. Contudo, se nos deixarmos levar e subirmos demasiado de nível, corremos o risco de banalizar algumas das lutas mais épicas, e por muito controverso que seja não vejo isto como defeito, até porque o grinding faz parte do ADN dos RPGs, mas claro, julgo que convém termos essa noção. Claro que enquanto contemplava este design honesto, não pude evitar comparar de o comparar à sua congénere moderna, ou seja, Final Fantasy VII Rebirth dado que os jogos clássicos e moderno apresentam filosofias bem opostas.
A Sandfall Interactive percebeu perfeitamente que o segredo dos RPGs de outrora não estava em mundos abertos gigantes cheios de ícones e minijogos a cada 10 passos e torres para ativar, mas sim no prazer da descoberta e na sensação de estar num mundo onde temos sempre algo novo por descobrir. Todo o conteúdo opcional pós-jogo também é de grande qualidade e é bastante desafiante. As áreas secundárias não são espaços vazios, mas locais únicos, com inimigos específicos, desafios próprios e até mecânicas e puzzles que exigem a mestria da aventura base principal. Até existe conteúdo narrativo muito relevante que só se descobre fora do caminho principal, tais como as conversas no acampamento, uma clara homenagem à série Breath of Fire, que oferecem momentos maravilhosos entre as personagens e são opcionais.
Clair Obscur: Expedition 33 faz um trabalho notável no desenvolvimento das suas personagens e na forma como as múltiplas interações ajudam a dar-lhes vida. O jogo está repleto de pequenos momentos entre os protagonistas que, para além de os humanizar, servem para fortalecer os laços entre todos e consolidar a dinâmica do grupo. É claro que nem tudo é perfeito. Ocasionalmente, surgem situações ou diálogos que soam algo forçados ou até deslocados. Felizmente, não são frequentes, e talvez os tenha notado porque o jogo possui momentos bem característicos do célebre humor sarcástico francês.
Quanto à história propriamente dita, posso dizer apenas que está cheia de reviravoltas, momentos emocionais marcantes e momentos absolutamente épicos, que nunca abdicaram de espaço para introduzir o citado humor francês que sejamos diretos “Putain” surge de rompante e sem aviso prévio. Gostei particularmente dos temas centrais que aborda, como o luto e a importância da família. Elementos que foram imediatamente elevados a outro nível através da componente audiovisual que vão fazer com que Clair Obscur: Expedition 33 leve muitas estatuetas de Keighley em dezembro para casa.
O Unreal Engine 5 brilha em expressões faciais realistas, efeitos de partículas impressionantes e iluminação dinâmica, neste ponto só algumas animações e lip-sync falham. Confesso que mesmo com uma build mega poderosa ver o jogo a correr a 120 FPS constantes a recorrer à tecnologia NVIDIA DLSS com todos os elementos em “Epic” foi incrível. Todos não é bem assim, porque o motion blur e a aberração cromática mancham a beleza natural de qualquer quadro. Mesmo nas batalhas mais caóticas a ambientes surrealistas o jogo nunca se desviou do seu alvo, só dei falta pela ausência da tecnologia Frame Generation ou Multi-Frame Generation porque dessa forma poderia desfrutar da aventura num monitor com uma taxa de atualização a 240hz.
Mas não é só na tecnologia que a Expedição 33 brilha, a direção artística é incrível. A fusão de fantasia, elementos da Belle Époque e motivos pictóricos dão jogo uma identidade visual única e singular. Os cenários são de cortar a respiração, cheios de vistas deslumbrantes, e raramente vemos dois locais iguais, o que significa que o sentido de descoberta se mantém constante. Contudo, por vezes também foram contraproducentes porque por vezes estão tão carregados de informação visual que não só dificultaram a navegação como fizeram com que perdesse completamente o meu sentido de orientação.
Como já devem ter se apercebido, a banda sonora também acompanhou este grau de excelência. Temas de piano e violino profundamente emotivos, faixas grandiosas para os confrontos mais críticos, variações magníficas do tema principal, enfim são tantas, que realmente vai ser um crime se Clair Obscur: Expedition 33 não levar a estatueta de melhor banda-sonora do ano, já nem digo de melhor RPG porque essa vai ser óbvia.
O mesmo se aplica à interpretação de melhor ator de voz. O elenco de atores é digno de um blockbuster de Hollywood. De destacar Jennifer English, a Shadowheart de Baldur’s Gate 3 e Ben Starr, o Clive de Final Fantasy XVI. O resto do elenco não fica atrás, com Kirsty Rider, Charlie Cox, Shala Nyx e Rich Keeble. Infelizmente, o jogo sofre de uma inconsistência que afeta o excelente trabalho sonoro. Por vezes a mistura de áudio foi inconsistente. Desde o início do jogo, foi frequente a música estar demasiado alta em relação às vozes, ou certas faixas mudarem abruptamente no meio de cenas importantes o que me obrigou a ajustar o áudio consoante a área e momento. Para os nossos leitores do outro lado do mundo o jogo conta com textos em Português do Brasil.

Porém, Clair Obscur: Expedition 33 consegue outro grande feito e atua como uma voz de critica ao mercado e tendências modernas. Por apenas 49,99 € e numa era onde a Nintendo pede quase 100 € para colocar Mario atrás de um volante e a RockStar Games vai pedir o que desejar por Gran Theft Auto VI é louvável e quase criminoso assistir ao que a SandFall Interactive pede para acompanharmos a Expedição 33. É deveras incrível e até macabro o que a estreante produziu quase do dia para a noite e expôs o estado da indústria dos videojogos moderna. Por 49,99€ não precisou de introduzir DLC’s, Season Passes, layoffs e crunches nos seus empregados para criar um jogo robusto, completo e livre de bugs ou outras inconsistências técnicas, o que revela o que a Ubisoft conseguiria produzir produtos incríveis se não tivesse de ceder à pressão e obrigações corporativas. O talento sempre esteve presente, os acionistas e falta de direção na gestão é que não deram hipótese de este ser manifestado. A propósito, o jogo também está disponível no serviço Xbox Game Pass, por isso as mais de um milhão de cópias não são um indicador do número de jogadores que o jogaram ou jogam.
Espero sinceramente que este o jogo sirva com uma mensagem para não só obrigar empresas como a Square Enix a repensar o que deseja fazer com a série Final Fantasy como também prove à indústria que existe espaço para produções com talento e sem medo de arriscar na criação de experiências completas sem recorrer a práticas desonestas. De todo o coração espero mesmo que a Expedição 33 produza uma revolução francesa nesta indústria e que ofereça um novo amanhã para a mesma persistir numa era onde podemos assistir a alguma escuridão no horizonte. Podem jogar Clair Obscur: Expedition 33 mesmo sem jogar os 32 anteriores, algo que se existisse certamente faria sem nenhuma dúvida.