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    Gainax, o estúdio que criou Evangelion, deixou oficialmente de existir

    Gainax foi oficialmente dissolvido a 10 de dezembro, encerrando 41 anos de história marcados por genialidade criativa e caos administrativo

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    A 24 de dezembro de 1984, um grupo de jovens universitários entusiastas de anime fundou um estúdio que mudaria para sempre a indústria. Quarenta e um anos depois, quase no dia do seu aniversário, o estúdio Gainax deixou oficialmente de existir. O anúncio foi feito por Hideaki Anno através do site do Studio Khara, o estúdio que criou em 2006 após sair da Gainax.

    A dissolução formal aconteceu a 10 de dezembro de 2024, marcando o fim de um dos nomes mais icónicos mas também mais conturbados da história do anime. Para quem acompanhou a trajetória do estúdio, este desfecho era esperado desde que a Gainax declarou falência em maio de 2024. Os últimos meses foram dedicados a resolver a transferência de propriedade intelectual, materiais de produção e dívidas acumuladas.

    Hideaki Anno, criador de Neon Genesis Evangelion e um dos fundadores originais do estúdio  Gainax, não escondeu a amargura no seu comunicado: “Estou genuinamente triste, mas aceito calmamente a situação”. Mas foi além da tristeza protocolar. Anno decidiu tornar público algo que o marcou profundamente, a descoberta de como antigos amigos e colegas fundadores se comportaram nos últimos anos da empresa.

    Durante o processo de falência, quando a nova direção da Gainax examinou contratos, emails e documentos internos para perceber o estado caótico das finanças, Anno teve acesso a informações que o deixaram devastado. O Khara, o seu estúdio, tinha fornecido empréstimos de emergência à Gainax numa tentativa de ajudar, mas o que descobriu nos registos internos foi perturbador.

    Anno acusou publicamente, pelo nome, três dos cofundadores da Gainax: Yoshinobu Asao, Hiroyuki Yamaga e Yasuhiro Takeda. Segundo o criador de Evangelion, estes homens, que ele considerava amigos desde os tempos de universidade, envolveram-se em práticas desonestas, incluindo falsas explicações dadas à Khara sobre a capacidade de reembolso dos empréstimos. Num caso específico, Anno revelou que Yamaga (que era presidente da Gainax na altura) instruiu os funcionários a dizerem que estava hospitalizado sempre que ele ou alguém da Khara telefonasse.

    “Eu considerava-os amigos desde os nossos dias de universidade” escreveu Anno com tristeza. “Quando soube o que tinham feito, os meus sentimentos foram além da raiva e transformaram-se em tristeza. Perceber mais uma vez que nunca poderei voltar à relação que tinha anteriormente com eles é profundamente doloroso”.

    Neon Genesis Evangelion rei

    A história do estúdio Gainax sempre foi marcada por este contraste entre genialidade artística e incompetência administrativa. Fundada a partir do coletivo Daicon Film, responsável pelas legendárias animações de abertura das convenções Daicon III e IV, a equipa estava muito mais interessada em criar arte do que em gerir uma empresa. Esta filosofia trouxe ao mundo obras revolucionárias, mas também contas por pagar.

    Em 1999, quando Evangelion era um sucesso absoluto e o dinheiro entrava em grande quantidade, o então-presidente Yasuhiro Takeda e o contabilista do estúdio foram presos por evasão fiscal e contabilidade fraudulenta. A instabilidade financeira tornou-se uma constante ao longo das décadas, com o Gainax frequentemente à beira do colapso mesmo nos seus momentos de maior sucesso criativo.

    O catálogo do estúdio é impressionante para qualquer padrão. Royal Space Force: The Wings of Honnêamise, a obra inaugural de 1987, estabeleceu o tom ambicioso. Gunbuster, a série OVA de 1988 que misturou comédia, desporto, mecha e ópera espacial de formas nunca vistas, nasceu de condições de produção descritas por ex-funcionários como caóticas. Nadia: The Secret of Blue Water, inspirada em Júlio Verne e com uma abertura inesquecível de Miho Morikawa, conquistou o prémio Animage Anime Grand Prix em 1991.

    Mas foi Evangelion, em 1995, que mudou tudo. A série não só revolucionou o género mecha como redefiniu o que o anime podia ser: psicologicamente complexo, visualmente arriscado, emocionalmente devastador. Evangelion tornou-se uma das franquias mais lucrativas do mundo, estimada em mais de 2 mil milhões de dólares. Paradoxalmente, foi este sucesso que começou a revelar as falhas estruturais do Gainax. Ninguém na gestão sabia o que fazer com tanto dinheiro.

    Anno revelou em 2019 que, no início, a equipa principal de Evangelion não recebeu nada dos lucros astronómicos além da taxa inicial de produção. Foi necessário negociar com a King Records para conseguir uma parte do dinheiro. Esta situação ilustra perfeitamente a relação disfuncional entre a criação artística e a gestão financeira que sempre definiu o estúdio.

    Em 2006, Anno fundou o Studio Khara e começou a afastar-se do Gainax. A sua saída não foi pacífica. Em 2016, dez anos depois de formar o Khara, o estúdio processou o Gainax por royalties não pagos de propriedades em que Anno tinha trabalhado. O tribunal decidiu a favor do Khara, ordenando que o Gainax pagasse 100 milhões de ienes (cerca de 900 mil dólares na altura).

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    O golpe reputacional mais severo aconteceu em 2019, quando Tomohiro Maki, então-presidente da Gainax com 50 anos, foi preso acusado de agressão sexual a uma adolescente que tinha assinado contrato com o Gainax na esperança de se tornar atriz de voz. Maki foi condenado em 2020 a dois anos e meio de prisão. Este escândalo afundou o que restava da credibilidade do estúdio.

    Após a prisão de Maki, houve uma tentativa de reestruturação. Yasuhiro Kamimura foi nomeado novo presidente e diretor representativo, com um conselho de administração que incluía representantes da Kadokawa, King Records e Studio Trigger. Anno, ainda acionista dp Gainax, e p Khara ofereceram apoio. Mas a dívida de 380 milhões de ienes era demasiado grande.

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    A declaração de falência em maio de 2024 foi inevitável. A gestão anterior tinha tomado decisões empresariais desastrosas a partir de 2012: tentativas não planeadas de abrir restaurantes, criar empresas de CGI sem estratégia, empréstimos não garantidos a executivos, investimentos falhados. Muitas empresas afiliadas foram estabelecidas em áreas regionais sob o nome Gainax, levando a demissões em massa no estúdio principal e à perda da capacidade de produzir anime.

    Durante os últimos meses, a prioridade foi garantir que os direitos de propriedade intelectual fossem transferidos para os lugares certos. Anno confirmou que, graças à cooperação de todas as partes, “a transferência de direitos, entregáveis e materiais de produção foi realizada com sucesso, seguindo procedimentos adequados, para os respetivos detentores de direitos e criadores”. Esta parte é especialmente importante numa indústria que, nos anos 80, não tinha sistemas organizados para rastrear quem era dono do quê.

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    No meio de toda a amargura, Anno teve palavras de gratidão para uma pessoa, Yasuhiro Kamimura, amigo desde a universidade e último presidente do Gainax. “Enquanto a antiga equipa de gestão da Gainax abandonou o legado do estúdio e falhou em assumir responsabilidade pelas suas ações ou cumprir as suas obrigações para com os credores, Kamimura dedicou-se a ganhar a cooperação e compreensão de todas as partes envolvidas para preservar os direitos intelectuais e materiais do estúdio enquanto lidava honestamente com os credores, vigiando o Gainax até ao seu fim. Por todo o teu trabalho árduo, obrigado, Kamimura”.

    O impacto prático do encerramento do Gainax no panorama do anime será provavelmente mínimo. O Khara já controlava a propriedade completa da franquia Evangelion desde a declaração de falência em 2024. Desde 2007, com o primeiro filme Rebuild of Evangelion, é o Khara, não o Gainax, que produz os animes. A distribuição e licenciamento internacional de Evangelion também são geridos pelo Khara há mais de uma década.

    Em 2011, mais funcionários da Gainax saíram para criar o Studio Trigger, que rapidamente construiu a sua própria lista de sucessos: Kill la Kill, Little Witch Academia, Delicious in Dungeon, e New Panty & Stocking with Garterbelt. Este último é uma sequela de uma série do Gainax que estreou em 2010, provando que as franquias não precisam de morrer com o estúdio.

    Rebuild of Evangelion e TikTok (2)

    Os direitos de obras como Gurren Lagann e Gunbuster foram organizados e transferidos com a assistência do Khara antes da falência, evitando que se perdessem. A marca registada Gainax foi transferida para o Khara para prevenir uso indevido. As antigas filiais regionais aceleraram o processo de se distanciarem do nome Gainax, a antiga Fukushima Gainax, renomeada STUDIO GAINA, mudou novamente o nome para BENTEN Film.

    Pode argumentar-se que o Gainax já tinha deixado de ser Gainax há muito tempo. Como o navio de Teseu, as suas estrelas criativas mais brilhantes tinham partido anos antes. O que ficou foi um nome, dívidas, e memórias de glória.

    Talvez o mais apropriado seja que o fim do Gainax seja tão complexo, emocionalmente confuso e inconclusivo quanto os finais das suas próprias séries. Neon Genesis Evangelion terminou com dois episódios experimentais e controversos. The End of Evangelion ofereceu uma conclusão alternativa igualmente divisiva. Gurren Lagann acelerou tanto na recta final que desafiou as leis da física narrativa.

    Anno expressou gratidão a todos os que trabalharam sem compensação durante quase seis anos para tentar reconstruir o Gainax após a prisão de Maki em 2019. Revelou que o acordo judicial com o Gainax só foi finalmente resolvido em janeiro de 2023, com um reconhecimento pelos réus das reivindicações do Khara e um pedido de desculpas. Mas esse pedido de desculpas formal não reparou amizades destruídas por desonestidade e falta de respeito.

    No final, o Gainax deixa um legado paradoxal, obras que mudaram o anime para sempre, criadas por pessoas que mal conseguiam gerir o sucesso dessas criações. Um estúdio fundado por fãs que se tornaram artistas, mas nunca empresários. Uma empresa que produziu algumas das animações mais influentes de sempre enquanto lutava para pagar as contas.

    A dissolução está completa. Os direitos foram transferidos. As dívidas foram liquidadas dentro do possível. As amizades foram destruídas. E o anime continua, produzido pelos estúdios que as antigas estrelas do Gainax fundaram depois de partirem.

    Helder Archer
    Helder Archer
    Fundou o OtakuPT em 2007 e desde então já escreveu mais de 60 mil artigos sobre anime, mangá e videojogos.

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