A Preservação ambiental é sem dúvida um dos maiores desafios que o mundo atravessa. Durante décadas a humanidade utilizou de uma forma desenfreada os recursos naturais do planeta. A fauna, flora e condições ambientais gradualmente começaram a sofrer diversas mudanças que condicionaram à extinção de várias espécies animais e paisagens naturais. Florestas verdes repletas de árvores altas deram lugar a urbanizações rodeadas de arranha-céus brancos, lagos naturais foram repostos por parques aquáticos fervorosos, e um céu azul foi tingido com tons de cinzento. Todos nós diretamente ou indiretamente fomos responsáveis por transformar a superfície do nosso belo planeta. Foi a meados da década passada que lentamente tomámos medidas para cuidar da mãe de todos nós, e conscientes do mal que causámos começámos a contribuir e consciencializar as outras criaturas da nossa espécie a cuidar do planeta azul. Enquanto algumas destas medidas foram adotadas com sucesso, outras devido a um extremismo -algo inconsciente- não foram tão bem aceites pela sociedade. A pequena ativista sueca Greta Thunberg que o diga.

Perante um misto entre liberdade e libertinagem de expressão nos vários canais e redes sociais, eis que surgiram os média de entretenimento. Foram várias as obras cinematográficas e literárias que ao longo dos anos nos revelaram uma realidade assustadora onde a natureza se extinguiu e cenários pós-apocalíticos ergueram-se das suas cinzas. Era uma questão de tempo até este tema transitar para os videojogos. É precisamente neste palco que as mensagens de After Us surgem em cena.

Gaia fará de tudo para oferecer um segundo ciclo ao planeta

Contudo, o Piccolo Studio e a Private Division apostaram noutra via. Ao invés de voltar a demonstrar uma visão realista assustadora, decidiram deixar a sua marca por trilhos surrealistas. À semelhança das obras referidas, o mundo de After Us também é desprovido de natureza. Os seres humanos produziram efeitos tão graves no planeta que o deixaram inabitável. É neste ponto que acabam as semelhanças com qualquer obra ou conto, porque em After Us não vamos assistir ao desenrolar de situações do ponto de vista da humanidade como habitualmente acontece, mas sim através da ótica da própria natureza.

O jogo metaforicamente apresenta-a como entidade. O mundo tornou-se num local sombrio sem luz nem esperança. Numa tentativa de resgatar as almas dos animais que outrora caminharam na sua superfície e foram aprisionadas em recetáculos, a “Mãe Natureza” utilizou toda a sua força vital para os tentar salvar, mas no processo perde a sua forma física. Como é incapaz de continuar a sua nobre missão, confia o seu “coração” a Gaia, a sua filha e espírito da vida para dar uma hipótese ao mundo de recomeçar um novo ciclo ao resgatar as almas dos animais e devolver a força vital da sua mãe de volta à “Arca”.

O intuito de Gaia é devolver a vida e espaços verdejantes ao mundo

Na teoria tudo parece levar a crer que estamos perante uma narrativa repleta de momentos incríveis e reviravoltas impressionantes, porém esse não é o caso. O parágrafo em cima não só resume a história como literalmente a conta do início ao fim. Contudo, este não é um ponto negativo, isto numa vertente emocional, porque ao percorrer do ponto “A ao B” vamos encontrar diversos locais, aos quais não fiquei indiferente -por vezes culpado- de experienciar o que pode acontecer ao nosso planeta se a humanidade não parar de explorar os recursos já bastante limitados. Culpa, esperança, benevolência, raiva, tristeza, sacrifício e renovação são estes sentimentos que Gaia nos vai fazer sentir ao percorrermos o seu mundo.

O mesmo foi meticulosamente construido por uma direção de arte incrível, aliás vou mais longe ao indicar-vos que este foi o maior destaque para mim em After Us. Além de uma palete de cores tristes e melancólicas, também conta com detritos de arranha-céus e automóveis que pairam no ar, metrópoles desprovidas de vida onde a tecnologia persiste, o lixo é uma constante, oceanos azuis banhados por numa substância gelatinosa cinzenta -com tentáculos que arrastam Gaia- e florestas que foram despidas de árvores e deram lugar a ratoeiras que encontraram em Gaia a sua próxima presa. Adicionalmente neste “pot-pourri” de ambientes também habitam os Devoradores, seres cobertos de petróleo que literalmente são uma personificação da alegoria social atual. Estes na verdade são seres humanos que morreram e ficaram com os seus corpos presos em ferrugem enquanto desempenhavam tarefas do quotidiano, um pouco à semelhança ao efeito de petrificação da série mangá/anime, Dr. Stone. Outro registo oriental em que a produção se parece ter inspirado foi Attack on Titan, visto que alguns destes Devoradores vivem apegados ao capitalismo e à ganância e de uma forma muito semelhante quer em estética (estão nus e são enormes) como em ações atacam assim que o inocente espírito da vida invade os seus olhares com uma raiva carmesim letalmente palpável!

seid ihr das essen, nein, wir sind der jäger!

Muitos destes devoradores estão munidos com televisores CRT nos seus torsos, pensem em algo como um cruzamento entre os titãs sem juízo de Attack on Titan e os Teletubbies, e Gaia tem de retirar estes objetos para purificar os seus corações com a benevolência do seu. Infelizmente os confrontos são muito arcaicos e rudimentares, diria mesmo que apenas são funcionais. A produção não poupou esforços para utilizar a própria Gaia para contrastar ambientes retorcidos e pessimistas. O nosso espírito ao caminhar deixa um rasto de flores. Também pode criar campos verdejantes com a sua força vital, fazer crescer árvores de sementes e resgatar a alma de animais. Estes realmente são as estrelas do espetáculo visto que estão dispostos em constelações e cada uma das suas inúmeras estrelas habita num dos cenários do jogo. Cada mundo é vasto, diria mesmo que dá a impressão de ser aberto e como estes fragmentos muitas vezes se encontram dispersos em rotas alternativas vai ser necessário optar por uma jogabilidade vertical para os encontrar. Contudo, não é obrigatório recolher todos para completar o jogo, mas ao completarmos todas as 7 constelações de animais do jogo os mesmos surgem nos ambientes e transmitem um certo sentimento de missão cumprida. Como existe a possibilidade de revisitar cada nível a sua recolha torna-se mais agradável por não exigir passarmos por partes exploradas e sem interesse.

Teletubbies, Teletubbies, digam OLÁ!

A humanidade também não foi esquecida neste quesito, mas ao invés do jogador colecionar estrelas, recolhe memórias de alguns seres humanos e descobrimos a vida que levavam antes deste cataclismo conduzir à sua extinção. De certa forma este elemento existe para criar um elo entre Gaia e a humanidade. Para auxiliar esta na recolha destes colecionáveis o jogador pode recorrer ao seu canto. Esta habilidade emite um sinal que indica a posição dos Devoradores e das suas memórias. Mesmo perante tantos colecionáveis e localizações, o sucesso da missão de Gaia é praticamente uma inevitabilidade. O jogo apenas coloca entraves no caminho para atrasar o seu progresso. Não existe desafio e a jogabilidade é demasiado simples, sendo que a nossa amiga apenas dispõe de manobras base. Correr, saltar, nadar e deslizar no ar (dash) são estas as ações que podemos esperar do nosso vigoroso espírito. O jogador também pode recorrer a uma espécie de “parkour” através das suas lianas e travessia de paredes para alcançar locais distantes, mas como o salto de Gaia tem uma física muito estranha este elemento não alcança o seu potencial. O jogo também não vai tirar muitas horas sono aos seus jogadores, a maioria deve cumprir as tarefas de Gaia com o relógio a roçar as 14/15 horas de jogo. O mesmo também inexplicavelmente exige a utilização de um comando no PC, visto que o rato e o teclado não são compatíveis neste momento e só mesmo os comandos first party da Microsoft são compatíveis, um efeito no mínimo estranho nesta plataforma. No entanto, no final desta aventura e muitíssimo à semelhança de Death Stranding sentimos que o nosso contributo vai ser sentido por todos e cada um de nós. Não vou dizer mais para não estragar uma bela surpresa, sublinho mesmo o termo “belo” na mesma.

Para executarem After Us também não vão ter de explorar muitos recursos ambientais quer do planeta como do vossos PC‘s. O jogo é facilmente exequível em qualquer máquina com pelo menos meia de década de componentes. Quer a nossa build composta por um processador AMD Ryzen 9 5950X, placa gráfica NVIDIA GeForce RTX 4090 MSI Suprim X e 64 GB RAM a 3600 MHz, como num portátil Lenovo Legion 5 equipado com uma placa gráfica NVIDIA Geforce RTX 3070 a 140w, não tiveram quaisquer problemas na execução do jogo em 4K/2K (respetivamente) com todos os efeitos visuais ativados e no máximo (Epic) -se bem que por vezes assisti a um ou outro soluço aqui e acolá na descompressão de shaders. Em primeiro lugar porque o jogo não possui texturas ou visuais muito exigentes e segundo porque está barrado a 60 fotogramas por segundo. Tudo parecia indicar que quando fosse transitado para a Steam Deck seria executado sem constrangimentos. Infelizmente não é esse o caso. No momento de escrita desta análise embora seja jogável na portátil da Valve ainda carece de muitas melhorias para ser totalmente desfrutado sem falhas. Isto porque ocasionalmente teve bastantes soluços e crashes na descompilação e carregamento de texturas, um problema que parece estar a assombrar os lançamentos de jogos desta plataforma em 2023. O jogo também parece ter uma utilização mediana de TAA (Temporal Anti-Aliasing), porque algumas texturas foram um tanto nubladas.

Utiliza as lianas para atravessares locais distantes

Um parágrafo que absolutamente não teve falhas foi a sua banda sonora composta pelo ilustríssimo Sire Daniel Elms. A mesma serve melodias calmas -porém elegantes- que se alternam adequadamente entre crescendos e coros grandiosos e emocionais para transmitir sentimentos de melancolia, paz e saudosismo ao jogador. O jogo está localizado em diversos idiomas onde constam com textos em Português, quer do europeu como do Brasil.

Recentemente o Presidente do Brasil, Lula da Silva disse que não existem videojogos que ensinam o valor de educar e amar. Pois bem, recomendo o Seu Lula a dar uma olhadela a After Us antes de proferir tal comentário. Este é mais do que um jogo, é uma mensagem de consciencialização dos nossos deveres enquanto consumidores. Feio, belo, triste, alegre, existem demasiados paralelos e sentimentos antagónicos nesta aventura para serem enumerados. Estamos perante um jogo de requinte na sua essência, mas que infelizmente ainda precisa de ser limpo de alguma sujidade. Este vai ser essencialmente um jogo que não se destacará pelos seus visuais, gameplay ou narrativa mas sim, pela experiência e crescimento que nos proporciona.

Bruno Reis
Vindo de vários mundos e projetos, juntou-se à redação do Otakupt em 2020, pronto para informar todos os leitores com a sua experiência nas várias áreas da cultura alternativa. Assistiu de perto ao nascimento dos videojogos em Portugal até à sua atualidade, devora tudo o que seja japonês (menos a gastronomia), mas é também adepto de grandes histórias e personagens sejam essas produzidas em qualquer parte do globo terrestre.
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